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Duas cartas de amor no jornal

"As trivialidades são o demônio!"

23/03/2016 13:13

Estava escrita na página de Informações e Novidades, próximo às cruzadinhas; muito discretamente inserida no jornal de terça-feira:

À moça que me disse adeus,

Outro dia passei de ônibus em frente ao banco que fica naquela pracinha onde costumávamos nos encontrar para conversar sobre as contradições da vida. Cortaram a amendoeira onde você marcou suas iniciais. Achei absurdo destruirem uma árvore tão antiga por um motivo trivial - alegaram que seus galhos estavam atrapalhando o trânsito ou as raízes aprodeceram, uma coisa assim. Trivial.

Comentei em casa que a senhorinha que vendia bolos próximo ao ponto de ônibus nunca mais apareceu. Acho que ela sentiu mais que todos nós a perca da árvore, que lhe servia de abrigo contra o sol escaldante dessa cidade. Então eu disse em casa que os cortes de árvores motivados por trivialidades acabariam por colocar a economia do país em risco. Imagine que aquela vendedora de bolos não tem mais sua sombra, não há como ficar ali naquele concretão escaldante, sob o risco de desmaiar e adoecer, o que lhe acarretaria na verdade uma grande despesa. Aquele dinheirinho que ela fazia vendendo bolos deixa de circular, e as pessoas ficam reféns das padarias, que a mim se assemelham a cárteis, cujos pães tem todos o mesmo salgado valor de R$ 0,45 centavos, e as fatias de bolo custam uma verdadeira fortuna. Um absurdo! As pessoas não vão poder pagar por muito tempo e se conformarão em comer biscoito, desses chamados "àgua e sal". O que acontece às padarias? E aos fornecedores? E por último aos produtores rurais? Sim, porque no fim das contas serão eles os maiores prejudicados com a falência das padarias e dos fornecedores. Terão de vender os grãos e o leite a um ínfimo valor que lhes baste para sobreviver. Os transportes ferroviários vão falir - já que não terão mais tantos grãos para carregar - a bolsa vai despencar, e a economia do país se acaba. "As trivialidades são o demônio!", eu dizia em casa. Mas ninguém deu ouvidos à minha análise. Mamãe ainda me olhou de uma maneira... Como se eu tivesse algum transtorno mental. Aí eu percebi o quão sozinho estava no mundo.

Se você estivesse me ouvindo riria de toda essa conversa e acrescentaria " vamos passar na padaria antes do caos, querido! Quero meu pão com manteiga!". Sinto falta disso. De seu bom humor suavizando meu pessimismo quanto ao futuro. Estou escrevendo para pedir notícias suas, porque depois da última vez em que nos vimos você parece ter se esquecido de mim, do meu telefone e e-mail, da minha rua.

Minha querida, uma discussão tão à toa de dois anos atrás terá toda essa força de separar-nos assim dessa maneira? Então me enganei. Me enganei sobre tudo. Pois para mim naquele momento não passava de trivialidade a sua obssessão por Marx e essas coisas. Você por outro lado não considerou que atacar a raiz do progresso - que é a economia- seria como uma punhalada neste seu amigo. Achei que você, com todo o seu bom humor iria acabar relevando. Mas o tempo passou e nunca mais ouvi a sua voz ao telefone, nem na praça que acabei de mencionar. Prometi a mim mesmo não procurá-la, por não querer importuná-la mais com minhas objeções ao seu posicionamento político. Mas já que estamos caminhando para o caos, eu decidi arriscar e estampar - ainda que neste ignorado espaço do jornal- minhas desculpas e meu apelo a que retomemos os laços de amor e amizade que nos uniram um dia.

Saudades,

Pepeu

Na mesma terça-feira à tarde o chefe de redação recebe uma enxurrada de e-mails comentando a tal publicação da carta, da qual ele sequer cogitava a existência. Descobriu depois que um diagramador recebeu ordens superiores para inserir o tal conteúdo no impresso, num local discreto, geralmente preenchido com notas sobre a vida de famosos. Não era nada grave, mas como se poderia responder aqueles milhares de leitores que exigiam- por sentimentalismo, ou curiosidade- uma resposta a carta? Tinha de esperar a destinatária responder ela mesma. Mas o jornal não recebeu nenhuma ligação, e os e-mails eram todos de leitores ou de agências de notícias enviando matérias prontas. Ao fim da noite ele mesmo já estava interessado em saber o final daquela trama. Resolveu ele mesmo inserir um anuncio na capa do jornal, com uma nota que dizia:

Levando em conta o grande número de leitores que procuraram a redação acerca de uma carta publicada ontem, terça-feira(09), resolvemos nos colocar à disposição da pessoa para a qual a publicação se destina, para a resposta à solicitação feita pelo remetente. Caso alguém tenha conseguido identificá-la e possa informá-la, ou até nos procurar para que tenhamos alguma satisfação aos nossos leitores, por favor entre em contato. A redação agradece.

(Continua)

Aldenice Sousa

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