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Pornografia feminista existe?

Entrevistamos a mestranda Samira Ramalho, que estuda sobre gênero e pornografia, com epistemologia feminista

22/05/2017 11:38

O blog Lasciva entrevistou a mestranda Samira Ramalho, que estuda sobre gênero e pornografia, com epistemologia feminista. Confira o que ela fala a respeito das vertentes favoráveis e contrárias às produções ponográficas, bem como as indicações de sites que trazem outra abordagem para os filmes do setor.


As diversas vertentes do feminismo pensam diferente sobre a pornografia. Quais são as teorias mais comuns e divergentes?

Sim, há debates de feministas sobre a pornografia. De maneira resumida, posso dizer que a vertente anti-pornografia é mais conhecida e até antiga. Na década de 80, Katherine Mackinnon e Andrea Dworkin ocupavam os espaços nos Estados Unidos com discursos anti-pornografia. Elas são as representantes mais famosas que eu posso lembrar no momento.

Nesta mesma época, Mackinnon esboçou um projeto de lei que foi analisado em alguns estados americanos, mas considerada inconstitucional por parecer censura à liberdade de expressão. No entanto foi apreciada no Canadá devido à relação de causalidade que as feministas apontavam à pornografia e a percepção sobre as mulheres no espaço público, como se a pornografia estimulasse o assédio e demais violências contra mulher.

O argumento principal é de que a sexualidade era para a mulher, assim como o trabalho era para o proletariado na teoria Marxista, um meio pelo qual se possibilita a exploração de um grupo. E ainda temos representantes com discursos bem contundentes contra pornografia.

Há também uma vertente pró-pornografia que não apoia essa censura do grupo contrário e discorda de que a sexualidade seja um campo de exploração da mulher. Rejeita teorias deterministas e essencialistas sobre a sexualidade, sobretudo da mulher. Acredita que a sexualidade, e até mesmo a prostituição, possa ser espaço de disputas, veem que essas relações podem acontecer de maneira fluida e acreditam na criticidade das pessoas que participam dela. Não acreditam em relação de causa e efeito entre pornografia, prostituição e sujeição de mulheres. 

Algumas cenas me parecem bem incômodas para as atrizes, como sexo anal, por exemplo. Qual é o limite para que não haja, de fato, a exploração da mulher?

Não tenho como responder sobre esses limites, mas a pornografia contemporânea mainstream, aquela mais comum de se encontrar na internet gratuitamente, tem roteiros que se repetem com muita frequência, como uma quantidade enorme de cenas com sexo anal, dupla penetração, sexo grupal com uma única mulher, etc. Também não posso dizer que essas práticas não são prazerosas para as mulheres em geral, pois isso seria um reducionismo ou uma doutrinação.

Existe uma diversidade muito grande em relação às práticas sexuais e são válidas desde que prazerosas para as pessoas envolvidas. Sobre consentimento, nem preciso falar, né?  Mas esses vídeos são feitos para homens. É para o público masculino heterossexual, sobretudo. Então se entende que o protagonismo é dos homens, por mais que a imagem da mulher seja a mais destacada naquele vídeo. É sobre o prazer de um homem, pode ser do ator, do produtor, do diretor, etc, mas é de um homem. Então isso por si só já merece uma problematização da parte de quem consome, principalmente se for uma mulher. 

Por que o público feminino não vê tanto pornografia quanto o masculino? É mais pelo conservadorismo, pela cultura machista que impede, pelo formato dos filmes ou tudo junto?

A resposta para isso também é difícil. Na minha pesquisa de campo, que ainda está sendo pensada, talvez apareçam posicionamentos sobre isso, mas de antemão, assim como disse anteriormente, esses vídeos são tradicionalmente feitos para homens. Os homens são aqueles que mais aparecem como usuários. Então esse fato já deve ter afastado muito o público feminino.

E sim, uma cultura machista onde as mulheres são socializadas de maneira diferente e têm uma percepção diferente da própria sexualidade também as afastou. Mas a internet está aproximando as mulheres da pornografia. A facilidade de acesso e a privacidade está mudando isso. Uma vez vi uma pesquisa de dois desses sites famosos de pornografia mainstream (XVídeos era um deles) afirmando que 35% dos acessos eram de pessoas que respondiam como mulheres. 

Antigamente, era com as prostitutas que os homens "aprendiam" a fazer sexo. Hoje o "ensinamento" vem dos filmes pornôs? De que forma isso deturpa as relações sexuais e a valorização do prazer da mulher?

Em todas as mídias eu vejo referências às práticas e performances da pornografia sendo utilizadas como exemplos para o que se considera um bom desempenho sexual. Vejo em filme, novela, desenho, séries,  programas diversos.

Há também pesquisas das correntes anti-pornografia (tanto feministas, como religiosas), assim como documentários, com discursos de que a pornografia molda garotos, homens e isso deturpa a maneira como eles constroem a sua sexualidade e a relação com as mulheres, atribuindo até a pornografia como influenciadora importante em episódios de crimes sexuais.

No momento, ainda com o pouco tempo de estudo que tenho sobre o tema, não acredito que as pessoas moldem sua sexualidade só com isso. Tem pessoas que sequer consomem pornografia, ou tiveram pouquíssimo contato, mas já possuem roteiros sexuais bem definidos e falocêntricos, incluindo o sexo anal. E isso é anterior ao pornô como conhecemos.

Há até mesmo uma teoria Freudiana do início do século XX que diz que os homens separam sexualidade de afetividade, como se uma mulher A fosse um objeto do desejo e a B fosse do afeto. O que se faz com A, não se faz com B. Pu seja, essa questão do prazer da mulher em relações heterossexuais é histórica e, dentro da mesma história, ela foi diferente. Não há linearidade.

Acreditar em efeitosdo pornô sobre meninos, é o mesmo também que acreditar piamente na antiga teoria da Agulha Hipodérmica. As pessoas não recebem da mesma forma um conteúdo, nem mesmo precisam ser atravessadas por ele. A pornografia pode não influenciar em nada, assim como pode impactar a vida de alguém. Cada indivíduo tem autonomia para definir seus próprios comportamentos e filtrar suas influências. E se há algo moldado aqui, acredito que é mais provável que seja a pornografia, que é um produto feito a partir de concepções, visões, interesses e fantasias da pessoa ou do grupo que a produz.

Não estou querendo isentar a pornografia, só acredito que não há uma única maneira de pensar sobre ela ou sobre as pessoas que a consomem.

Cenas de sexo lésbico são sempre irreais, com práticas que claramente não são prazerosas. Por que os produtores de filmes repetem tanto essa fórmula?

Então, assim como outras fórmulas que eu mencionei, essa é uma bem recorrente. No senso comum é bem divulgado que homens sentem tesão em ver duas mulheres transando. Em conversas do cotidiano já ouvi bastante isso também. Assim como eu disse anteriormente, quem faz o pornô coloca aquilo que ele acredita, que ele gosta ou que ele acha que vai atrair consumidores.

O pornô tradicional é masculino mesmo, então não há nenhum compromisso em agradar as mulheres lésbicas nem hétero, nem trans. Ninguém que não seja do gênero e do sexo masculino. E parece que por todo esse tipo de pornografia passam práticas e discursos que penalizam o corpo feminino. Como muitas mulheres relatam, as práticas parecem causar dor, então denotam punição.

É possível falar em um pornografia feminista? Os filmes da Erika Lust poderiam sem chamados assim?

Esse é um campo de intensos debates, mas acho que é possível. Talvez até as feministas anti-pornografia acreditem que ele possa existir, só não há nada no momento. Talvez seja coisa do futuro.

A pornografia que se intitula feminista já tem um diferencial em relação ao mainstream: não tem violência. Nisso todo mundo concorda. Além disso, ela geralmente tem preocupação estética, com a narrativa, com os corpos e pode ser considerado de fato um cinema pornô. É um produto com uma qualidade cinematográfica.

A Erika Lust é uma das mais famosas e é a pornógrafa cujas produções eu tenho mais contato. Ela produz seus roteiros baseados em fantasias enviadas por mulheres e, por isso, ela considera que atende às expectativas femininas. Mas também é muito possível que muitas dessas fantasias femininas também sejam heteronormativas, permeadas por algum machismo. Há feministas que não concordam que ela denomine a pornografia dela como feminista, mas ela reivindica o título para si. Há também outras diretoras de sucesso como a Tristan Taormino, Candida Royale e Petra Joy.

Existe uma série de documentários curtos chamada Hot Girls Wanted: turned on que está na Netflix. A Erika Lust aparece no primeiro episódio e ela diz que outro diferencial dela é todo o clima de sororidade que há no set, uma equipe quase toda de mulheres, os atores que em geral não são profissionais e por isso não fazem "pornografia" e sim "sexo", que a mulher é realmente a protagonista do desejo, entre outros argumentos que ela utiliza para defender a própria pornografia. Lógico que após esse episódio apareceram muitas críticas à posição de "exploradora de outras mulheres", pois ainda há problemas em relação ao uso da imagem das mulheres para as feministas críticas. Mas é melhor que possamos produzir diferentes reflexões sobre o tema e ampliar o debate. 

Poderia citar filmes ou sites que reproduzem pornografia diferente dos modelos mais conhecidos?

Não vou indicar a pornografia diretamente, mas é bom dar uma olhada no site do Feminist Porn Awards, que é uma premiação criada por uma marca de brinquedos sexuais e que tem dado visibilidade ao cinema pornô feminista. Lá tem diversas informações sobre diretoras, atrizes e atores, além dos nomes das produções. Mas aviso que os filmes delas são pagos, em sua maioria. 

Fonte: Nayara Felizardo
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