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A potência de morte da democracia brasileira

O governo brasileiro atual possui dois vieses de atuação bem complexos.

08/11/2019 12:30

De um lado, uma pauta moral afronta os direitos do cidadão e das minorias e procura trabalhar a regulação dos corpos, inclusive na intimidade. É essa pauta que está trabalhando paulatinamente para reduzir os direitos das crianças, das mulheres, da comunidade LGBT e dos negros e negras, por exemplo. Por outro lado, a pauta econômica embasada em um fundamentalismo arcaico liberal procura quebrar todo a construção do Estado nação brasileiro que teve como foco os direitos do cidadão, nas últimas décadas, e procura transformá-lo no oásis de um mercado, voltado para um capitalismo selvagem já abandonado pela maioria dos países do hemisfério norte, há tempos. 

As reformas:  trabalhista do governo anterior, da previdência deste governo e agora as três PEC-Proposta de Emenda Constitucional, batizadas de Pacto Brasil  ( A transformação do Estado) composto pela PEC do Pacto Federativo, PEC da Emergência fiscal e PEC dos Fundos Públicos, propõe uma redução progressiva do Estado brasileiro e uma precarização dos serviços que hoje ainda são oferecidos pelo Estado que passarão para iniciativa privada, além disso, propõe a redução dos salários dos servidores em 25%, mas não toca nos direitos de classes já privilegiadas como os magistrados. No que concerne a uma possível aprovação do Pacto Brasil, o governo brasileiro, assim como, no caso da reforma (deforma) da previdência aposta na divisão do povo e dos próprios trabalhadores para conseguir sua aprovação. No caso da reforma da Previdência, pessoas que se aposentaram, inclusive, este com ano, com idade inferior ao teto estabelecido, foram enfáticos apoiadores da reforma que não os incluiu, ou seja, o governo aposta na divisão e na incompreensão social de si, da sociedade brasileira (se não me atinge não é problema). Todo esse conjunto de proposições holísticas aliada aos constantes e incessantes ataques à liberdade de expressão e de imprensa,  todas as ingerências políticas dos governos nas universidades públicas, considerando ainda o excessivo braço dos militares nos cargos públicos, considerando a flexibilização do trato com o meio ambiente e com as reservas indígenas, é que a nossa democracia caminha para a morte, disfarçada de si própria.

Dito isto, partimos, da democracia brasileira, ou melhor, da grande problemática de uma incipiente e imperfeita democracia  para relembrarmos rapidamente Ranciére que em um texto do começo da década passada nos fala que o  ódio à democracia não é novo, no entanto, a potencialização da violência e do ódio ao status democrático é algo contemporâneo. Segundo este autor, já há algum tempo o governo democrático passou a ser entendido como “mau” quando privilegia os direitos da coletividade e tenta afinar igualdade e liberdade.  Enquanto que os “bons” governos democráticos se voltam para a liberdade e direitos individuais. Trata-se do modelo de uma democracia liberal em que o individualismo cultuado pelo mercado do “eu” rege não só a esfera privada, mas pública.

Nesse mesmo texto, Rancière nos alerta, por exemplo, para o fato de que “o novo discurso antidemocrático faz um retrato da democracia com traços que eram atribuídos antigamente ao totalitarismo. Esse retrato passará por um discurso de desfiguração como se, tendo se tornado inútil o conceito de totalitarismo, se pudesse aproveitar seus traços que podem ser compostos e recompostos para refazer o retrato daquilo que se supunha ser o seu oposto, exatamente a democracia. Algo que em outra frente, Humberto Eco nos chama atenção para as transformações do fascismo eterno, ou UR-fascismo que se insere, nem tão disfarçadamente, nas democracias atuais.

O fato é que essas inversões e apropriações sobre o que seria uma democracia, estão em experiência no Brasil de hoje, como já estiveram em um Brasil do passado. 

Em 2011 o ranking da The Economist Intelligence Unit classificava apenas 11%  da população mundial, residente em 25 países, como pessoas que viviam em democracias plenas. Infelizmente, nós brasileiros estamos fora e agora, cada vez mais fora. Em 2011 ocupávamos a 44ª posição no ranking das democracias, qualificados pela instituição acima nomeada, de democracia imperfeita. Vale destacar que o ranking baseia-se em 60 indicadores que são agrupados em cinco categorias, a saber: liberdades civis; funcionamento do governo; participação política; cultura política e, por fim, processo eleitoral e pluralismo. Foram qualificados como democracias imperfeitas 54 países, existindo ainda os regimes híbridos localizados em 37 nações e regimes autoritários em 51 países. Em 2018 a mesma instituição conduziu novamente a pesquisa que é anual e constatou que 89 países tiveram queda no que denominam de índice democrático em comparação a 2016. Apenas 27 países tiveram melhora. Ano passado o Brasil já ocupava o 49º lugar.

Já em 2019, o Brasil caiu mais uma posição, no ranking pela The Economist Intelligence Unit, nosso país já se encontra no 50º lugar ( vale destacar que em 2017 já tinha ocupado a 51º) e se perpetua como uma democracia imperfeita, entretanto, já com características de regime híbrido em que movimentos de um liberalismo econômico convivem com uma pauta mais constrangedora de liberdades civis.

Os dados revelam o reposicionamento do Brasil que por cerca de 20 anos esteve em uma posição entre o centro e a esquerda, tendo se tornado mais direita à partir do impeachment, ou melhor, do golpe que atingiu a Presidenta Dilma Rousseff em 2016 e que por último, vem se colocando, sobretudo, no que concerne a uma pauta moral, quase na extrema direita, em contraponto a uma pauta econômica que parece se orientar por um neocapitalismo selvagem.

Durante os dez meses de seu governo, Jair Bolsonaro, seus assessores e ministros tem se esforçado diariamente com falas, programas, projetos de leis e decretos, para retirar direitos e liberdades civis. Em todas as frentes o governo atual liderado  ainda pelos componentes do PSL-Partido Social Liberal caminha rumo a um regime não democrático, embora mantenha um discurso de preservação de uma democracia liberal e direcionada às elites.

Nesse contexto, vale lembrar o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos que em artigo publicado no portal SUL21 (2018) denunciou detalhadamente que as democracias também morrem democraticamente.  Temos visto este processo se estabelecer em vários países na atualidade. Personagens pertencentes ao mainstream político se colocam como outsiders e vendem discursos morais em que a corrupção é tida como alvo e os valores morais do passado, incluindo os que se referem à família e ao corpo, retornam através de políticas de controle e regulação. Em geral tais personagens da cena política e aí podemos citar em países como Brasil, Estados Unidos, Turquia, Russia, Hungria, Itália, Polônia e, por último, Inglaterra, se colocam como antissistema e anti-política, e, em geral rejeitam as regras do jogo democrático. Pregam a violência de Estado como solução para os problemas de suas nações, sobretudo, para o combate às ideias de esquerda (Fala de Eduardo Bolsonaro sobre volta do AI-5 é bem ilustrativa). Nas palavras de Sousa Santos (2018) tais políticos como Bolsonaro e Trump já se apresentam às eleições com uma ideologia anti-democrática. Os antidemocratas ou podemos dizer, os autocratas da atualidade pouco se importam com as normas, regras e leis que regulam as democracias, mas tão somente se pautam pelas suas próprias crenças e pela vontade de poder que os leva a desconsiderar a nação e se preocupar somente com o entorno de si. 

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