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Por que precisamos de um dia da consciência negra?

Notadamente, porque somos um povo inconsciente de forma quase holística.

22/11/2018 08:25

Então, quando no dia da consciência negra ( efeméride incluída no calendário escolar e de algumas cidades brasileiras tardiamente, somente há 15 anos) vemos pessoas que se auto denominam “cidadãos de bem” protestarem contra a data, como protestam contra as cotas nas universidades e contra os programas de inclusão social, temos que retornar ao nosso lugar de fala e tentar esclarecer aos pensamentos naturalizados e hipócritas deste país cada vez mais louco, porque precisamos ter um dia para o despertar da consciência negra.

Primeiro, porque a sociedade brasileira é racista sim. Racista e hipócrita. O mito da democracia racial tem servido para esconder nossa verdadeira essência violenta e preconceituosa que retornou à superfície no último pleito eleitoral, mostrando a face da injustiça social que justifica privilégios de poucos como direitos e arrola os direitos dos mais pobres como privilégios.

Partindo, portanto, do reconhecimento de que somos uma sociedade preconceituosa e racista, um pouco de história, como sempre, faz bem, sobretudo, a quem não possui consciência nem de si, que dirá do outro, ou, da humanidade, como propagavam os “cidadãos de bem”, em posts nas redes sociais esta semana afirmando que: “não precisamos de um dia da consciência negra, branca, parda, amarela, albina...precisamos de 365 de consciência humana”.

Podemos inicialmente, relembrar os quase 400 anos de escravidão institucionalizada em nosso país, se incluirmos a escravidão dos indígenas, verdadeiros donos deste país. Mas a escravidão que a Lei Áurea aboliu se travestiu, posteriormente, de inúmeras outras formas de dominação que tem acompanhado os negros e descendentes até os dias atuais. Inclusive, se consolida nas desigualdades sociais do nosso Brasil que condena os negros ainda hoje à pobreza, violência e exclusão.

Mas, podemos ainda começar também pelo viés da própria língua, principal veículo de dominação. No português, como na maioria das línguas de países que também sofreram com a escravidão do povo negro, muitos vocábulos que servem para denominar coisas ruins se referem ao negro, tais como: denegrir, por exemplo. No mesmo mote negativo inúmeras metáforas são usadas por nós, sempre anexando o que é ruim ao negro. Nesse sentido, Vera Lúcia Paiva e Edna Menezes lançaram o livro intitulado Metáforas do Cotidiano, em que relacionam frases que utilizamos com grande frequência e que não nos damos conta do quão perverso é para com os nossos irmãos negros. Exemplos: Cambio negro – comércio ilegal; mercado negro- comércio ilegal; caixa-preta- falta de transparência; lista negra- relação de coisas prejudiciais; magia negra- bruxaria; humor negro- humor com elementos macabros; peste negra- doença que assolou a Europa na idade média; ovelha negra- pessoa que possui mau caráter; besta negra- inimigo, etc.. E como não citar: o lado negro da força- o lado do mal, do perverso Darth Vader da saga Star Wars.

Aqui, como já sabem meus leitores, vale lembrar Nietzsche para quem o bem só bem porque alguém em condição de poder assim o forjou e denominou. E, portanto, o mal só é mal pelo mesmo motivo.

Do ponto de vista histórico se voltarmos à Constituição de 1824 o negro, nas palavras de Verônica Baravieira (2005) “ [...] situava-se em região limítrofe entre coisa e pessoa, mas na pior das situações, pois seu interesse era o último que prevalecida, ou seja, conforme o interesse dos senhores, o negro adquiria e perdia sua precária personalidade”.

Cem anos depois, na Constituição de 1934 falava-se em todos iguais perante a lei, entretanto, esse todos não eram todos, visto que essa pretensa Carta magna era de grande inclinação eugênica e pregava a educação eugênica, separando o lugar dos negros nas escolas. Mas ia bem além e até mesmo aos imigrantes eram imposto que seriam bem recebidos somente os que provassem ter boa ascendência europeia, vide a própria Constituição de 34, Art. 2º: “Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.

Essas imposições históricas e contumazes do Estado brasileiro ao povo negro se naturalizaram a tal ponto, que toda a sociedade chegou a considerar e em grande medida ainda considera, que os negros são inferiores. O absurdo dos absurdos, no entanto, se consolida como discurso de dominação através dos fetiches e seduções da hegemonia branca em um país de mestiços, mulatos e caboclos que se pretendem brancos, pois mesmo quando brancos são e possuem ascendência europeia, essa é não é das melhores, se formos considerar o status social construído naquele continente, visto que para cá, vieram os pobres, os indesejados, os fracassados, os que não conseguiram se incluir em seus países, por inúmeros motivos. Então o preconceito não se justifica, muito menos a falácia de inferioridade dos negros.

“Sim, mas hoje o Brasil não vive essa realidade, somos todos fraternos irmãos e o racismo é mimimi, vitimização de negro”. Não sei em que país vivem os hipócritas que acreditam nisso, mas não é no Brasil que mata negros em proporções infinitamente maiores que brancos, que violenta e mata mulheres negras a cada minuto. Que trata como marginais qualquer negro ou mulato simplesmente pela cor. Que discrimina professores universitários, médicos, artistas e todos os profissionais negros minimizando o valor de seu trabalho simplesmente pela cor da pele. Que ainda hoje discrimina negros no acesso a prédios de luxo em localizações privilegiadas deste país, portanto, repito em alto e bom som: hipócritas!

Depois de tudo isso, obviamente, “muitos cidadãos” de bem ainda acham que não precisamos ter consciência da importância da inclusão do negro na sociedade. Contestam cotas para universidades públicas porque consideram privilégios dados a uma cor. Que tal lembrarmos que a igualdade de que fala a nossa Constituição só pode ser conquistada se todos tivermos as mesmas oportunidades. Isso significa comer a mesma comida, estudar nas mesmas escolas, dormir em camas similares, ter conforto no calor ou no frio, ter acesso a transporte de qualidade de forma igualitária, ter acesso a saúde de qualidade do mesmo modo igualitariamente...

As políticas públicas de cunho social procuram exatamente diminuir as disparidades construídas em uma sociedade predatória que não possibilita condições de vida igualitárias para todos. Bolsa família não é privilégio, é necessidade. Já auxílio alimentação de valores absurdos para o Judiciário é privilégio e não direito. Cotas para universidades não constituem privilégio, constituem uma reparação das desigualdades sociais. Meritocracia caríssimos, que me parece só existe enquanto discurso, só funciona quando a linha de partida na corrida social é igual para todos. Fica a dica!

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