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Porque comemorar a profissão de professor(a) na distopia brasileira

Confira o texto publicado pela colunista Ana Regina Rêgo no Jornal O Dia.

17/10/2019 10:28

Durante o ano de 2019 a educação, enquanto campo primordial de formação e desenvolvimento humano de um povo, vem, em nosso país, sofrendo ataques por parte das instâncias governamentais e de seus representantes. Cortes de verbas, contingenciamentos, proposições de mudanças nos projetos pedagógicos e nos currículos do ensino fundamental e médio, estão na pauta do retrocesso educacional. No ensino superior os cortes orçamentários e os contingenciamentos foram elevados a um nível que impede as Universidades Federais de funcionar plenamente, ao passo em que se propõe a privatização disfarçada das Instituições de Ensino Superior vinculadas ao governo federal, através do Programa Future-se, já rejeitado pela maioria das IES.

No que concerne aos ambientes de pesquisa, pós-graduação e desenvolvimento tecnológico, os ataques têm sido orquestrados e implantados de forma a prejudicar potencialmente o futuro. Nas áreas vinculadas às humanidades, os cortes se apresentam maiores e o preconceito, enquanto desconhecimento da importância dos campos das humanidades e ciências sociais compromete o futuro do país como livre e independente. Uma das medidas mais drásticas em formatação é a que pretende fundir as agências de fomento CAPES e CNPq, destruindo a capacidade das duas instituições de atuar, cada uma em seu âmbito de fomento à pós-graduação e à pesquisa no Brasil.

Por outro lado, a figura da/do docente vem sendo atacada frontalmente, tanto pelo senhor que  hoje ocupa o cargo máximo da nação, o Presidente, Jair Bolsonaro, que já nos chamou de “idiotas úteis”, enquanto que o Ministro da Educação, Abraham Weintraub,  que mais se ocupa em destruir o campo da educação, recentemente, denominou os professores universitários de “zebras gordas”.

Declaradamente, o governo em suas diversas áreas de atuação, trava uma batalha contra a educação e contra as/os docentes. Suas pautas principais, complexas e prejudiciais à nação a curto, médio e longo prazo, a saber: a pauta econômica neoliberal de um capitalismo selvagem já desaprovado e em mutações na maioria dos países desenvolvidos; e, a pauta conservadora imposta por uma moral neopentecostal que se alastra pelo nosso país; procuram reduzir os investimentos em educação e privatizar o que for possível, relegando a grande maioria da população brasileira à ignorância, visto que impedidos de desenvolver o pensamento, nosso povo retornará ao status de homem lavoro, quando não escravo,  que trabalha, produz, não pensa, não critica, não contesta, odeia a política e as ideologias e se deixa dominar pacificamente.

Então me pergunto, enquanto professora do ensino superior da rede federal pública e gratuita: _ o que há para comemorar nesse cenário distópico? Muitos perguntam: _ você trabalha ou só dá aulas? Faz alguma coisa além de ir para a Universidade? Trabalha em alguma empresa também?

Pois bem, grande parte da nossa população embora compartilhe posts de parabéns aos “coitados” dos/das professores(as), nem gostaria de ser professor, nem tampouco consideram a docência uma profissão, visto que tem consciência da remuneração e do reconhecimento baixos.

Mas o que há para comemorar? Na verdade, para além da distopia governamental midiática que nos insere em um momento histórico quase ucrônico, temos muito a comemorar.

Quando comecei um curso de graduação na Universidade Federal do Piauí na década de 1990, o acesso era extremamente restrito. O número de vagas reduzido. Na primeira década do atual século os governos do Partido dos Trabalhadores ampliaram as ofertas, abriram novos campi, abriram novas universidades, descentralizando a disseminação e a produção do conhecimento, democratizando o acesso à educação através da política de cotas, que visa corrigir injustiças históricas.

Nessa conjuntura de abertura e impulsionamento da educação e do ensino superior, eu, já enquanto professora, presenciei a mudança de perfil dos discentes, comecei a ter em sala de aula, alunos pobres, negros, portadores de alguma deficiência, vindos de vários estados, com matrizes culturais e religiosas distintas, conformando uma diversidade cultural maravilhosa. O número de aprovados foi elevado para 5 vezes mais do que quando comecei o curso de jornalismo em 1993.

Esse investimento transformou a universidade pública e a dotou de uma pluralidade maior de pensamento, proporcionando a mudança de vida dos alunos (as) que tiveram e tem a oportunidade de estudar em uma Universidade Federal em todo o país, antes destinada aos bem-nascidos na elite. Do ponto de vista econômico o país vivenciou uma ascensão das classes sociais menos favorecidas que terminaram entrando para a classe C, visto o acesso aos bens de consumo que passaram a ter. Isto não tem volta, quem começou a pensar não se transformará em um fantoche social comandado por elite conservadora que deseja a volta da empregada doméstica escravizada.

Temos sim, muito a comemorar, pois fizemos e fazemos parte da mudança. Um país foi mudado para melhor e não deixaremos que a ganância de poucos leve nosso povo de volta à miséria e a ignorância, nem que fique à mercê dos mercadores da fé que ficam à espreita nas esquinas em busca de fiéis para atingir suas metas e conseguir ganhar mais em suas igrejas-empresas.

Mas o que faz um docente em uma universidade pública? Em primeiro lugar não trabalhamos somente 8 horas como a maioria das pessoas. Trabalhamos 24 horas por dia, todos os dias da semana. Não apenas estamos na sala de aula, mas preparamos as aulas para turmas de graduação e pós-graduação. Corrigimos trabalhos, avaliações e acompanhamos os trabalhos práticos em campo. Temos vários orientandos que vão da Iniciação Científica Voluntária aos mais elevados níveis da formação stricto sensu  e atendemos aos orientandos, às vezes em plena madrugada, sobretudo, quando o prazo para entrega de monografias, dissertações e teses se aproxima.

Mas, não nos ocupamos somente da docência, somos cientistas, somos pesquisadores e temos projetos em vigência permanentemente. No campo da pesquisa participamos de redes nacionais e internacionais. Somos escritoras(es), publicamos artigos nas melhores revistas qualificadas. Publicamos e organizamos livros que trazem nossas pesquisas científicas e comprovam nossas parcerias. Tudo de extrema importância para situar nossos cursos de graduação, nosso Programa de Pós-Graduação, nossa Universidade, nosso estado e nosso país no cenário da pesquisa mundial.

Então temos muito a comemorar pelas centenas de discentes com quem conseguimos trocar conhecimento, pelas dezenas de pesquisas que realizamos, pelas dezenas de publicações que fizemos, mas, principalmente, porque enquanto professores podemos mudar a realidade de muitos. Por fim, me curvo a todos os meus mestres e mestras,  e, em especial, a mais importante de todas: minha mãe, Francisca Maria de Barros Rêgo Leal, professora dedicada e competente que mudou a vida de muita gente.

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