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Das lembranças

de uma infância despejada

08/06/2015 09:20

Confesso que não me recordo muito bem do gosto. Lembro-me de ser acordada cedo da manhã pelas vozes e gargalhadas felizes que vinham da cozinha, do café sempre forte, sempre quente e cheio de carinho, do bolo frito, dos pães comprados do homem que passava de bicicleta em frente a Casa Antiga, mas do gosto do leite quentinho tirado na hora? Não, não me lembro.

Desculpe a sinceridade de uma infância inteira assim, despejada. Talvez meu paladar de criança nascida e criada em uma cidade quase grande, tenha me impedido de guardar gosto tão carregado de lembranças. Mas me recordo de cada detalhe daquelas férias na Casa Antiga. De ter que dormir em uma rede, bem próxima a outra rede, dos inúmeros colchões espalhados pelos quartos, dos adultos que organizavam a casa para que todos dormissem em paz, um ao lado do outro, somente com o espaço para o coração respirar. E, de fato, eu respirava muito amor e incontáveis histórias.

Os quintais cheios de aventuras e caminhos a serem percorridos – um mundo inteiro desconhecido bem ali na vastidão de meu olhar. Árvores, trilhas imaginárias, dragões em formato de sombras. E eu, vestida de coragem: uma criança em busca de histórias a serem desbravadas.

Esforço-me para lembrar do gosto do leite quentinho, natural, mas minha memória falha. Consigo voltar ao instante em que meu tio saía do curral, subia os três degraus da cozinha com cuidado, equilibrando-se ao som dos passarinhos, para que o leite não caísse da vasilha e não derramasse, levando junto toda a dedicação em alimentar uma família grande, que só se reunia em temporadas como essa que aqui descrevo.

A cozinha, aos poucos se enchia de vida, enquanto que os quartos se esvaziavam e os colchões eram empilhados um a um, próximo as janelas. As crianças percorriam a casa inteira, correndo e redescobrindo novos cômodos que eram reinventados a cada brincadeira. Os adultos - irmãos e amigos - trabalhavam o café da manhã como se fosse a tarefa mais importante de suas vidas, montavam a mesa, reuniam as xícaras e preenchiam aquele espaço com conversas que há muito esperavam serem postas para fora.

Ainda assim, sem muito lembrar do sabor daquele líquido branco e engordurado, levado à mesa e partilhado por todos que ali se reuniam, sinto que tudo aquilo, depois de passados tantos anos, agora seguem misturados em mim, impregnados em mim, em um único gosto de saudade.


Por: Perdiz
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