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Joana, a leitora criminosa

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23/09/2015 12:35

“Proibido pegar livros. Dirija-se ao atendente mais próximo”, dizia a plaquinha fixada recentemente na parede da biblioteca. Uma surpresa para todos, sobretudo, para Joana, frequentadora assídua e apaixonada daquele lugar.

Na adolescência, Joana esbarrou por acaso na biblioteca mais antiga da cidade. Caminhando sozinha no trajeto diário da escola para sua casa, a menina de 14 anos assustou-se quando dobrou em uma esquina qualquer e se deparou com aquele prédio imponente, com um porte autoritário e o portão principal aberto, atraindo-a.

Foi a primeira vez que ela desobedeceu às ordens severas de sua mãe, que sempre dizia que a menina não deveria desviar o caminho de casa. As duas moravam juntas a três quadras dali, mas, quase não se viam. Desde muito cedo, a menina era a única encarregada dos afazes domésticos, ocupando suas tardes e noites solitárias com sabão, escova, vassoura e uma dura realidade, enquanto que a mãe trabalhava o dia inteiro em uma padaria do outro lado da cidade. Todas as noites, para compensar a ausência, sua mãe lhe trazia deliciosos sonhos empacotados em papel alumínio.

Seduzida com a beleza daquele prédio, a pequena adolescente abriu sua mochila, retirou todas as dúvidas juvenis e as obrigações domésticas, deixou tudo na calçada e sutilmente meteu-se sozinha em um mundo estranho e cheio de histórias até então desconhecidas.

Dizem que cada pessoa tem uma reação especifica quando entra em contato com seus primeiros livros. Surpresa, paixão, frustração, ou talvez uma mistura intensa de tudo isso, que invade o corpo inteiro de uma vez. Joana não sabia ao certo o que estava acontecendo com ela naquele exato momento. Caminhava vagarosamente, percorrendo todas as prateleiras, fazendo esforço para ler os títulos apagados dos velhos livros de capa dura. Ela nunca havia lido algo que não fosse seus livros escolares. Da prosa e da poesia, pouco sabia além dos seus conceitos.

 Joana não tinha se dado conta ainda, mas ali, com seus 14 anos, seus óculos quebrados e seus cabelos desgrenhados, ela estava reinventado todas as suas futuras andanças.

Ao final da tarde, voltando para casa, sentiu como se lhe faltasse algo. Procurou nos bolsos, na mochila, dentro do peito – tudo estava no lugar. Mas nada permanecia da mesma forma que era há poucas horas. Por entre as prateleiras, Joana deixou pedaços soltos de sua alma de adolescente inquieta que havia encontrado um doce conforto para os dias vazios.

Durante muito tempo, a biblioteca tornou-se casa de sonhos, um abrigo, quase o único refúgio para uma Joana que não se reconhecia ano após ano. Tornou-se uma jovem cansada, com uma jornada dupla de trabalhos-estágios-estudos e obrigações domésticas. Mas que não deixava de ir nenhum dia à biblioteca.

A jovem acreditava que cada livro era especial e tinha um poder mágico. Para ela, ninguém era capaz de escolher uma história por si só: era a história que escolhia seu leitor. Joana passava horas e horas perambulando por entre as prateleiras e, havia dias em que saía da biblioteca sem nenhum livro em mãos. “Hoje não fui escolhida por ninguém. Amanhã venho mais charmosa para sair com um livro que valha a pena”, pensava no caminho de volta para casa com as mãos vazias. Enquanto que havia dias em que sua mochila ficava duplamente mais pesada por ela ter sido eleita a leitora especial de três ou quatro livros.

Joana, namorada, amante, prostituta dos livros, sonhava com o dia que conseguiria mergulhar mais profundo nas histórias que lia, ao ponto dela mesma ser a personagem principal, uma clandestina da vida real praticando um crime fantasioso.

Mas, quando se deparou com aquela plaquinha recém-fixada e compreendeu o seu significado, ela viu suas imaginações sendo acorrentadas. Se em dez anos, ela podia transitar livremente por entre tantas histórias que, a medida que eram desvendadas, tornavam-se tão suas, justamente hoje, sob um céu cinzento, bonito para chover, seu melhor prazer foi despedaçado.

“Proibido pegar livros. Dirija-se ao atendente mais próximo. Proibido pegar livros. Dirija-se ao atendente mais próximo. Proibido pegar livros. Dirija-se ao atendente mais próximo”. Repetia para si. Acostumada a sentir todos os cantos daquele lugar, aquela plaquinha lhe atingia muito forte o peito.

A medida não foi questionada por muita gente. Em pouco tempo, a maioria das pessoas estava habituada ao procedimento imposto: acessar o sistema on-line, verificar a disponibilidade do livro previamente escolhido, anotar o código, entregar para o atendente e aguardar que lhe seja entregue o objeto desejado. Diziam: prático, automático, sistemático – um avanço!

Para Joana, uma doença. Sentiu como se tivessem privado-lhe da presença constante de grandes e importantes amigos. Nunca soube ao certo o real motivo da medida implantada. Buscou preencher o tempo que gastava se perdendo por entre as prateleiras, com outras coisas: mais estudos, mais trabalhos e cafés. Mas, como seu vicio maior era aquele lugar, aqueles livros, as novas alternativas não supriram a necessidade maior.

Conhecendo a biblioteca mais do que qualquer pessoa, armou um plano. Recordou-se de um lugar escondido que dava acesso a uma das partes das prateleiras de livros franceses e estava decidida a entrar por ali para saciar seu desejo de amante-leitora.

Após uma semana, tomou a decisão de entrar clandestinamente na biblioteca. Já havia arquitetado tudo: local, horário e até como iria distrair os guardas. Ela só não contava com as outras mudanças que foram instaladas junto com a plaquinha que tanto lhe machucou.

No ato do delito, Joana acabou sendo presa. Ela conseguiu entrar pelo esconderijo, colocar na mochila alguns dos livros que escolheram a ela como leitora neste curto tempo, mas, ao tentar sair, foi detida por um guarda. A jovem foi levada à delegacia e foi interrogada e fichada pelo delegado, sendo liberada em poucas horas. Saiu dali sem os livros que tinha pegado naquela tarde e com seu primeiro registro como delinquente na polícia. Na plaquinha da sua foto de criminosa foi anotado: Joana Sonhadora, presa por um crime literário.

Por: Aldenora Cavalcante
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