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O Homem

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28/08/2015 14:15

De peito aberto, ele seguia pelas ruas acima e abaixo. Não tinha casa, não tinha canto para repousar a cabeça, e qualquer lugar é lugar: calçada é cama, cimento frio é o colchão. Tão logo, descobriu que as estátuas são amigas sempre diligentes, para que se fale sempre que queira, a exorbitar os limites dos dias, das noites, do que sejam horas, do que ele saiba ser o tempo. O certo dessa relação com as esculturas urbanas é que os abraços estáticos são frios e quentes, a variar ao longo do dia, e ele sempre tinha a certeza da semi-indiferença.

 Mas a noite, com seu manto escuro, sempre fez com que ele pensasse mais na necessidade de aconchego, contudo, juntar o corpo às amigas estátuas era mais frio: era um momento de reconhecimento da própria solidão, um passar de olhos e saber que era ao menos aquilo que tinha.

As flores de manhã ao longo dos canteiros das ruas, das casinhas, e no canteiro da maior avenida da cidade eram a alegria plena, para confortar o corpo e a alma de um calor escaldante ao longo do dia. Aliás, na ninharia, na migalhice, qualquer sombra, e o menor conforto é uma dádiva, qualquer brisa passageira é o consolo e uma semente para guardar um pouco de fé, para conseguir um punhado de força para sorver o dia em pequenos goles, e às vezes em longos haustos.

Mas rememorando, o peito aberto: o seu coração estava exposto. Câmaras, válvulas, cada nervo, e pequena parte do músculo em trabalho pleno, diante da velocidade de quem não tem tempo de olhar mais nada. Não, o homem de peito aberto era completamente invisível para os demais de sua espécie. O barulho difuso e agudo do bater de pernas, troar dos motores, buzinas de desespero, o ruído interior do tédio dos pontos de ônibus formavam um invólucro nas vistas dos transeuntes.

Somente ele ali ficava, a ver cada pessoa, do varrer do chão laranja à gravata de cetim, cada detalhe: era disso que preenchia o dia, uma observação sem fim, como se estivesse em uma torre de vidro para vigiá-los. Mas não se engane: não há segurança, mesmo quando os mais perigosos animais não são capazes de vê-lo.

 A tez do homem franzia de dor, e em meio ao curiar da vida dos demais: as moscas e as larvas lhe devoravam o peito, dia após dia. Cada vez que em seu peito pungia um lance de espasmo, lembrava que aquilo era uma missão, um afazer dado pelo próprio destino em pessoa, que entregou-lhe a chave de cada rua daquela cidade, que já percorrera todas, uma por sua vez. Dor perene, mas a vastidão não era extensa à vida, efêmera como cada uma das flores, que lhe presenteavam de conforto em cada manhã.

Talvez, em piedade, pousou um pássaro negro sobre o músculo, e arrancou-o às bicadas em uma voracidade de dias sem alimentação. Algumas horas, minutos: não se sabe; mas, ninguém o ouvia gritar, e nem o homem tinha noção de tempo. Ele não aguentou e murchou, de uma vez, ao fim do dia, no trocar do sol pela lua.

Foi coberto de outros pássaros negros, que vieram gralhar e terminar com a carcaça do que um dia fora um homem. O invólucro se desfez, e os demais homens, aqueles animais perigosos de sua espécie, pela primeira vez, viram-no. Um horror na Avenida Frei Serafim.





Por: Julianny Nunes
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