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O Amigo - Raimundo Nonato dos Santos, o Paredão

Era um ano mais novo do que eu e anos-luz mais competente em tudo o que fazia.

16/12/2019 12:03

O Amigo

Fazia um tempinho que, à beira do açude, eu tentava vãmente fisgar uma piaba. De repente, chega um garoto negro, sossegado, senta-se a meu lado e começa a pescar. Parecia que todas as piabas do universo estavam ali à espera dele. Não perdia uma isca. Um tanto envergonhado com minha incompetência, perguntei-lhe: como é que você faz? Ele não disse nada, sorriu e continuou a pescar sossegadamente.

Uns dois dias depois, voltei a encontrá-lo na beira do açude. Antes que eu falasse alguma coisa, ele se aproximou de mim e disse: “Pescar com isca de beiju não serve. Use bolo de farinha”. Deu-me um pedacinho e me ensinou como prepará-lo. Explicou também como eu deveria ser rápido para fisgar as piabas espertas. Pronto: nascia ali uma amizade que durou mais de 50 anos.

 Raimundo Nonato dos Santos, o Paredão, era um ano mais novo do que eu e anos-luz mais competente em tudo o que fazia. Jogava bem, nadava bem, passarinhava bem, tocava realejo, jogava pião e aparava na unha e fazia tudo isso com a mais absoluta naturalidade. Como se não bastasse isso, menino ainda, tinha uma profissão: era exímio sapateiro. Sabia, entre outras coisas, costurar bola de futebol. Aprendera o ofício com os pais. Mas o Paredão era, acima de tudo, extremamente generoso: melhor do que eu em tudo, deixava que eu assumisse o comando nas atividades compartilhadas. Juntos, caçávamos, pescávamos, zanzávamos por toda parte.

O apelido Paredão nasceu nos campinhos de futebol. Ele tomava conta da zaga com tamanha eficiência que o goleiro do nosso time podia ler gibi durante o jogo. Um dia, cansado da nossa incompetência no ataque, fez-se centroavante, o mais habilidoso já visto na cidade.  Poderia ter-se tornado profissional. Preferiu continuar em São Raimundo Nonato, comendo picanha, bebendo cerveja, consertando carros...

Quando eu voltava à cidade, antes de chegar à casa de dona Purcina, parava na residência do Paredão para que ele me agraciasse com o seu melhor sorriso. Ele me abraçava, passava a mão na minha carapinha branca e perguntava: “É tapioca, nego?”. Eu replicava: nego burro, é giz. E ríamos como moleques vadios. Ao longo da vida, Paredão só me fez uma falseta: saiu de cena no mesmo dia (2 de maio de 2005) em que dona Purcina me deixou órfão. Parafraseando Bentinho, quis o destino que as duas pessoas que mais amei na vida saíssem de cena, juntas, sem se despedirem de mim. Que a terra lhes seja leve...

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