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A onda do politicamente (in) correto

Maria das Graças Targino - ([email protected])

27/02/2019 12:21

“40 anos.” Texto do jornalista brasileiro, Alexandre Eggers Garcia, publicado em diferentes meios de comunicação com expansão inacreditável nas redes sociais de comunicação, trata da diferença entre gerações e épocas, tomando como parâmetro de comparação os anos 1971 e 2011, a partir da menção de casos modelares. Por exemplo, em 1971, um meninote, por pura folia, quebra o farol de um carro estacionado próximo à casa da família. Como consequência, punição severa do pai. Mais adiante, 2011, o filho do tal adolescente repete a travessura. A mesma penalidade. Só que, desta vez, o filho não hesita. Após a surra, denuncia o pai. Este é condenado à prestação de serviços comunitários. O autor segue. Uma criança, na hora do recreio escolar, cai e se machuca um pouco. A professora o assiste com carinho. Afaga-o. Abraça-o. O menino volta a brincar, como se nada ocorrera. Em 2011, acontecimento com características idênticas ganha proporção gigantesca e chega à mídia. A escola é acusada de descuido. A diretora torna-se vítima de mil afrontas. Pouco a pouco, perde a alegria de ensinar. Aposenta-se prematuramente. Cai em depressão e enfrenta a tristeza d’alma.

Noutro caso, Alexandre Garcia faz menção à “cantada” (sem desrespeito e com humor) de um jovem a uma colega de trabalho. Ano 1971. Ela reclama, mas, ao final, aceita sair para jantar a fim de “discutir a relação.” Desde então, estão casados e, aparentemente, felizes. Em 2011, também em ambiente de trabalho, um homem elogia as belas pernas de uma colega. É acusado de assédio, demitido e obrigado a pagar indenização à “vitimada.” Sozinha, com suas pernas fatais e fatídicas, a não mais jovem mulher segue a vida... São vários causos... Muitos dos quais vivenciados ou assistidos por nós ou por alguém de nosso convívio, no passado ou no dia de hoje. Em 1971 ou 2011 ou 2019. É a estratégia utilizada por A. Garcia para alertar sobre a tirania da expressão – politicamente correto. Antes dos anos 90, de uso esporádico, ganha destaque, a partir dos Estados Unidos, depois de ser tema de uma série de artigos do prestigiado jornal “The New York Times.” Daí, segue para outras nações. E ao ser adotada, com exagero, de forma ridícula e infundada, termina por erguer barreiras e muros elevados entre as pessoas, o que não evita a onda de muito sexo sem amor; muito casamento sem afeto; muita amizade sem cumplicidade; muito camarote de carnaval sem “parças”, na acepção de parceiro e amigo verdadeiro em todas as horas. Quer dizer, politicamente correto indica algo ou alguém que segue as normas impostas por grupos e instituições sociais, de forma explícita ou implícita. É a adaptação do linguajar e do agir habitual ao contexto, de forma a evitar o uso de estereótipos ou de referências às variadas formas de discriminação existentes, como racismo, sexismo, homofobia, gordofobia, tecnofobia, automatonofobia (fobia de anões), etc. Do outro lado, está o politicamente incorreto. A precaução em evitar termos que denigram a imagem de determinados grupos sociais é

considerada estúpida e, por conseguinte, é ignorada. Por exemplo, no Brasil, os programas humorísticos, salvo honrosas exceções, exploram temáticas delicadas e tendem a desconsiderar princípios clássicos do respeito ao outro.

O que ocorre, porém, é que, na prática, as duas posições mesclam-se e se confundem, de maneira que o politicamente incorreto ganha dimensão desproporcional. A expressão que deveria indicar e denunciar o uso de linguagem e atos que tentam marginalizar, insultar e afrontar grupos sociais minoritários, como os desfavorecidos economicamente (haja vista o sofrimento dos moradores de rua, de vez em quando, mortos a pauladas em vias públicas); os homoafetivos em sua ampla categorização; os negros e / ou pardos; os gordos; etc. assume tom excessivo e disforme. Como consequência, o politicamente incorreto é, agora, adotado, mais e mais, em tom pejorativo, para indicar que essas políticas estão alcançando o ridículo. É como se perdêssemos a noção de certo e errado, indicando que conhecemos o valor material (preço) de tudo ou quase tudo, mas somos incapazes de avaliar o valor (a importância) dos sentimentos que aproximam os seres humanos.

O excesso prossegue. Recentemente, após apresentação de uma cantora e dançarina obesa num palco qualquer, alguém posta no Facebook observação cheia de humor acerca da potência do tablado ao suportar o peso. Isto foi o bastante para gerar polêmicas infinitas e forçá-lo a se desculpar ante a acusação de difundir a gordofobia. Pior ainda. Muito mais grave. Postamos “40 anos”, como forma de reflexão, numa página eletrônica de uma universidade pública qualquer. Seu final diz: “[...] o que deu em nós, nesses 40 anos, para nos tornarmos tão idiotas, jogando fora a vida como ela é? [...] É a ditadura da hipocrisia imbecil do politicamente correto!” Fomos solicitados a retirar o texto, sob o argumento de estímulo ao politicamente incorreto. A censura num ambiente de geração de novos saberes e de discussão das mudanças contemporâneas é uma das provas evidentes da decadência intelectual nacional!

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