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Adoro brincar de ser filha!

Maria das Graças Targino - ([email protected])

14/02/2019 06:19

Em Recife, num sábado ensolarado de carnaval, Ana Carla chegou ao mundo. Chegou em meio à folia que espocava entre serpentinas, confetes, corsos de rua, etc. Chegou em meio à dor

sempre inesperada do primeiro parto de uma quase adolescente. Recebi uma menina pequenina. Não das mãos do Rei Momo, mas das mãos de Deus, sob a forma de um médico e cunhado

querido por toda a vida. Ali, em meus braços, eis alguém frágil, mas me dizendo – vamos em frente, que a vida e os sonhos nos esperam! Realmente, os anos correram. Minha filha trilhou o

caminho natural da vida. Deixou de ser bebê para se tornar criança, adolescente, mulher e, sobretudo, ser humano, no que a expressão contém de mais nobre.

Somos mãe e filha.

Somos mãe e irmã. Somos mãe, filha e companheiras. Somos cúmplices, mas somos, essencialmente, amigas. Mesmo distantes fisicamente, há muito tempo,

em respeito profundo à sua opção de atuar fora do Piauí, sempre estivemos umbilicalmente juntas. No meu coração, a certeza de que minha filha está a meu lado. Em seu coração, a certeza

de que há uma mulher a seu lado para o que der e vier. Sempre nos quisemos muito. Sempre respeitamos a liberdade de ir e vir da outra. Isto não significa dizer que vivemos, sempre, um

mar repleto de calmarias ou um céu sem nuvens e de azul perene. Como natural, tivemos nossos mares de “ressaca” e nossos céus sombrios. Nossos desacertos nos acertaram e nos aproximaram

mais e mais. Nossas diferenças – uma vaidosa ao extremo; e a outra, de jeans e camiseta – nos fazem rir. Dentre tudo isto, vivemos experiência extraordinária no que há de mais fantástico em

qualquer relação entre as pessoas: nunca construímos um muro de mentiras.

À minha filha, ensinei, e que bom, ela aprendeu! Respeitar o outro, não importa quem

seja ou o que seja, fugindo de qualquer rótulo, mesmo quando este parece ser o caminho mais fácil. Honrar compromissos de qualquer natureza. Lutar por um lugar ao sol sem jamais “puxar o

tapete do outro.” Cultivar a gratidão, uma vez que os ingratos são pessoas impiedosamente estéreis, porque incapazes de fecundar no coração a semente do amor e do reconhecimento.

Exercitar a complacência a cada dia e o perdão, a cada hora, mesmo quando parece difícil. Olhar o passado com a certeza de que é ele que permite a cada um ser o que é.

O que Ana Carla é? Uma filha com coração de filha; uma grande mãe para seu filho; uma grande amiga para os que lhe rodeiam; uma profissional comprometida com o que faz; uma

mãezona para suas cadelinhas; uma mulher com coragem infinda de desbravar o mundo para melhorá-lo com a obstinação silenciosa de expandir a reciclagem; uma sobrevivente em meio à

miséria humana, que escorre em vales de hipocrisia, violência e cinismo na sociedade de hoje.

Não é à toa que seu aniversário de 50 anos, 9 de fevereiro, tem o odor de rosas e de amor,

mas, sobretudo, de gratidão. Nossos amigos sabem o susto que nos afetou nos meses de abril afora no ano passado. A gratidão persiste como elemento maior em todo esse processo. Sim,

minha “única menina mulher” adoeceu. Não precisamos do SUS. Não precisamos abrir uma ficha numa UPA. Não precisamos de internação em hospitais públicos. Agradecemos aos céus e

ao Deus misericordioso a possibilidade negada à maioria do povo brasileiro: possuir excelente plano de saúde; possuir o apoio incondicional da empresa onde minha menina trabalha; e

usufruir da chance de recorrer a um dos chamados hospitais de referência do país.

Na imensidão dos corredores longos e no fluxo intenso de cirurgias e curativos, somos

insignificantes. Somos a doença e nada mais do que ela. Por tudo isso, não consigo esquecer que muitos e muitos outros não tiveram a oportunidade de minha filha, e continuam a esperar no

meio do caminho um atendimento, qualquer que seja. Lembro dos médicos – poucos – que mesmo bem-sucedidos olharam em seu rosto, tentaram entender o contexto de sua vida e de sua

agonia e não se perderam nos longos caminhos da indiferença. Lembro, mais. Lembro de uma médica – Juliana – que denunciou o caos da saúde no país, num relato que viralizou na internet e

que transcrevi num dos meus livros. Ela diz: "Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. Eu, cirurgiã-geral “do trauma” [...], que carrego no carro o manual da equipe militar que atendia na guerra do Afeganistão, chorei. Na frente da sala da sutura tinha um paciente idoso internado. Numa cadeira. Com o soro pendurado na parede num prego similar aos que pregamos samambaias. A seu lado, seu filho [...] E toda vez que eu abria a portinha da sutura, ele estava lá [...] Teve um momento em que desmoronou. Ajoelhou-se no chão, começou a chorar, olhou para mim e disse “não é para mim, é para o meu pai, uma maca.” [...] Saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei numa maca da ala feminina".

Ou seja, ao tempo em que agradeço ao nosso Deus, à equipe que salvou a minha filha e à corrente dos amigos que por ela pediram, clamo aos céus para que mais julianas atuem em

hospitais públicos ou particulares, em hospitais de referência ou precários postos de saúde nos recantos do Brasil. Clamo por mais julianas, que mantenham a capacidade de chorar e de olhar

no rosto dos enfermos e dos familiares, enxergando sua aflição e sua dor! As dores do corpo e da alma são sempre anestesiantes e indescritíveis – nada mais solitário do que a dor de cada um de

nós. E minha filha lutou como uma leoa ou uma tigresa. Foi mais forte do que eu. Resistiu mais do que eu. Enfim, foi e é uma heroína! Teima em ser minha mãe! E se é para falar a verdade,

brincar de ser sua filha!

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