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Catedral de Notre-Dame e Museu Nacional

Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica

24/04/2019 05:31

Umberto Eco, escritor italiano de renome internacional, ao longo de sua trajetória, 84 anos intensamente vividos, circulou por áreas distintas sempre com competência e racionalidade. Ao contrário dos acadêmicos de nossa geração, seu distanciamento de qualquer tipo de casulo sempre me encantou. Por exemplo, enquanto todos se sentem compelidos a enaltecer as potencialidades das tecnologias, veio a público, em diferentes ocasiões, para declarar o que muitos pensam e poucos confessam. Para ele, ao lado das benesses das inovações tecnológicas, está o malefício imensurável de a internet “dar voz a uma multidão de imbecis. Multidões de imbecis têm agora como divulgar suas opiniões. Não estou falando ofensivamente quanto ao caráter das pessoas. O sujeito pode ser excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende.”

Diante da tragédia de repercussão mundial pelo simbolismo da Catedral Notre-Dame, localizada na Île de la Cité, no centro de Paris, rodeada pelo rio Sena e nas proximidades do marco zero da capital, enquanto as chamas a atingiam, por volta de 18:50h da segunda-feira (horário local), 15 de abril, mobilizando mais de 500 bombeiros-heróis para controle do fogo, nas redes sociais circulavam aos borbotões comentários os mais insanos possíveis. Alguém, num grupo de discussão, afirma que a reconstrução vai ser rápida, porque, afinal de contas, “ela já é uma réplica!” Outros atribuem o fato nefasto às forças zodiacais ou a forças do mal, sem contar os que falam em ação terrorista. São colocações que reforçam as duras palavras de Eco.

Com frequência ainda maior choveram comparações entre nossa perda irreparável com o incêndio que atingiu o Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, no dia 2 de setembro de 2018. Na condição de detentor do maior acervo de história natural e de antropologia da América Latina, possuía mais de 20 milhões de itens catalogados, distribuídos em coleções de ciências naturais e antropológicas. Transcorridos mais de sete meses, os recursos exatos para a reconstrução e/ou restauração do prédio histórico e de parte do acervo ainda constituem uma incógnita para a população brasileira. As palavras do Presidente Jair Messias Bolsonaro, constantes de vídeo divulgado pelo G1 e disponível a qualquer são realmente inacreditáveis: “'Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? Sou Messias, mas não sei fazer milagres!”

Do outro lado, sem esconder sua emoção, o presidente da França, Emmanuel Macron, assegura seu empenho em devolver a Catedral Notre-Dame à humanidade. De imediato, lança movimento nacional de arrecadação de fundos. Em poucas horas, a campanha “Notre-Dame de Paris, je t'aime” e outras mais, além de diferentes iniciativas da administração pública da região Île de la Cité e de grandes empresas, a exemplo do grupos LVMH (marcas Louis Vuitton e Dior) e Kering (Saint-Laurent e Gucci), arrecadaram a soma incrível de mais de 600 milhões de euros. E tudo isso num prazo mínimo de quatro dias! Sem contar o fato de que líderes de vários países e de organizações internacionais já se colocaram à disposição para ajudar. E aí vai em tom de pergunta e não de acusação: o que nós, brasileiros, fizemos EFETIVAMENTE em território nacional em prol do Museu?

Ainda em sua primeira fala ao povo francês, impregnada pela intenção de transformar dor em esperança, Macron continua: “nós a reconstruiremos todos juntos. É sem dúvida uma parte do destino francês e estará no projeto que teremos para os próximos anos. A Catedral de Notre-Dame [cuja construção iniciou em 1163, por ordem de Maurice de Sully, bispo de Paris e durou 180 anos] é nossa história, nossa literatura. É o epicentro de nossa vida [...] Trata-se da Catedral de todos os franceses.” Eu acrescento: de todos os povos, da religiosidade cristã e ocidental e de toda a humanidade, o que justifica a mobilização de orações, cânticos e lamentações de pessoas do mundo inteiro, reiterando que é ela Patrimônio Mundial da Humanidade, título outorgado pela UNESCO desde 1991.

O fogo começou na parte superior da estrutura gótica, que estava em plena restauração. Para se ter ideia, o prédio estava envolvido por gigantesca estrutura de andaimes, instalada a 100 metros de altura. Parte do telhado foi destruída. Parte da abóbada também desmoronou, como aconteceu com a torre chamada de flecha ou agulha (por seu formato), com 93 metros de altura e edificada com toneladas de madeira e chumbo. A estrutura de pedra da fachada e de suas duas torres com campanários resistiu ao incêndio. Dentre quadros, esculturas, peças sacras e três imensos vitrais do século XII e XIII de cerca de 13 metros de diâmetro (as chamadas rosáceas) recuperados intactos, chamam atenção a integridade da cruz do altar central, do sacrário, e, em especial, da Santa Coroa. Acredita-se ter sido ela usada ao longo do Calvário de Cristo, além de um pedaço da cruz e um dos pregos usados em sua crucificação.

De fato, para quem visitou a Catedral uma ou mais vezes, a sensação de paz e de contemplação é algo que não se descreve. Nessa tragédia inteira, tal como na destruição de nosso Museu Nacional, fica a certeza de que não se reconstroem histórias, e, sim, prédios e instalações. Isto porque, as histórias que ambos encerravam em seus muros, as lágrimas derramadas por pessoas que ali estiveram, o suor derramado por cada trabalhador, nada disso é possível de ser restaurado! Porém, sem dúvida, a distinção mais visível entre os dois casos – Catedral e Museu – refere-se ao comportamento de governantes e povo! 


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