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Combinação incomum: caos e serenidade

Maria das Graças Targino - Jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica

01/04/2020 20:44

Em meio ao caos da pandemia do terrível coronavírus, às vítimas que prosseguem dias e noites, noites e dias perdidas no tempo e no espaço de tantas cidades, países e continentes, unem-se os que, paradoxalmente, permanecem separados na chama da dor por muros intransponíveis, isolados em suas casas ou, mais que isto, distantes dos que buscam um lugar para chamar de seu. Não precisa ser uma calçada suja, uma esquina fétida, um parque abandonado... As autoridades protegidas repetem o discurso de ficar em casa. Mas não dizem qual. Naquele barraco abandonado onde ficamos por algum tempo, a rede rasgou, o teto furou, a parede rachou...

Avenidas largas e nobres, ruas estreitas e até ruelas e vielas assemelham-se, em seu conjunto, a uma cidade fantasma, com alguma praça ou algum parque perdido onde sobra verde e onde os pássaros gorjeiam chamando os que lhes afagam. O trânsito quase se despede. Mais do que nunca, todos temem todos. A solidariedade aparece aqui e ali. Carolas e beatas que tanto ajudam religiosos paramentados, esquecem de suas faxineiras, dos garis que limpam suas ruas, dos que zelam por suas moradias. Salvo raras exceções, valores extras para seus serviçais impedidos de trabalhar são esquecidos.

É uma situação que, talvez, ninguém tenha imaginado vivenciar em suas vidas. Os mortos são ensacados e, então, identificados. Não há velórios face ao contágio. Aos familiares restam poucos minutos para um adeus sereno ou desesperado. Afinal, nada é mais solitário do que a dor humana ou os sentimentos mais profundos de cada um de nós.

Não há culpas ou culpados, mas a infâmia prossegue. Políticos inescrupulosos, de olho nas eleições que se aproximam, seguem seus desafios e seus concursos de vaidade. A mídia exerce sua função de informar, mas informações mesclam-se com desinformações. Nas redes sociais, o fluxo intenso de disse-me-disse é impossível de seguir à risca, com mentiras ou meias-verdades. Para surpresa de alguns amigos, coloquei meu celular na quarentena. Duas ligações diárias para os filhos ou assuntos urgentes. Ele estava exausto de receber tantas notícias nonsense – textos, vídeos, filmes curtinhos, anedotas, chacotas, brincadeiras, algumas das quais, a bem da verdade, hilárias e que nos extraem risos. Nós, os velhinhos e as velhuscas estão em alta. Hágalhofa, troças e similares que são apenas manifestações irônicas ou maliciosas, acredito eu, sem intuito de magoar ou ferir quem quer que seja.

Não sei se o castigo ao celular está certo ou não. Pouco importa. Não sei se a redução aos telejornais, também. Nem aí. Acertada ou não, é minha opção em busca de um pouco de serenidade. Quando a gente se sente sozinho ou se é sozinho, capta, com mais rapidez, os prenúncios de esperança e de felicidade. E os deposita no coração, os prende na alma e segue adiante. Acredito que tudo passará. Adiante, olharemos pelo retrovisor e teremos mais presente a sensação de nossa fragilidade diante do passamos ou do que está por vir. A serenidade vai estar acenando para os risos estridentes e estrondosos.

Prefiro ir deixando, pelo meio do caminho de flores e pedras, o risco da tristeza, da depressão, dos quase amigos, dos quase inimigos, dos quase amores. Continuo sem deixar que o medo e a saudade se tornem impeditivos para novas tentativas ou novas buscas. Às vezes, é verdade, sorrateiramente, vem o desejo de jogar a serenidade pela janela e receber de braços abertos a tristeza. Mas só de vez em quando. O resto do tempo, dedico-me a olhar para frente, a sonhar, a ler, a escrever. É a busca pela sonhada felicidade. São momentos intensos e, às vezes, fugidios, mas que afastam a sensação de vida-velório e fazem da vida uma estranha festa. Uma festa a que se vai, sabendo que há fim. É assim a sensação de felicidade que sempre vivo. Cedo, muito cedo, aprendi que nada é para sempre. Em oposição, tudo pode ser de verdade durante sua breve estada ou estância.

Afinal, nada expressa tão bem a impossibilidade de compreender a vida como a sensação densa (mas não morna) de ser quase triste e, ao mesmo tempo, quase feliz. Novamente, mais uma opção: ou passamos a vida, tentando compreendê-la ao dissecá-la como os legistas o fazem diante de um corpo sem vida, ou a vivemos sofregamente, usufruindo a magia e a serenidade da própria vida, distante de uma quase vida. De que serve uma vida outonal, em que o verde não é verde e as folhas não são secas?  E-mail para contato: [email protected]

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