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Homens e sapatos

Sapatos, vestidos, lingeries, acessórios, etc. são forma de expressão diante do mundo, inclusive como indício de desprezo frente à opinião dos que nos cercam.

31/10/2018 11:09

Há alguns anos, eu, sempre avessa ao julgamento de outrem por sua aparência, escutei alguém, ao meu lado, afirmar, com veemência: “aquele ali é um pé-rapado”, referindo-se a um senhor sentado à mesa vizinha. Surpresa, perguntei de imediato: “como tem tanta certeza?” Ela respondeu sem titubear: “Olhe seus sapatos!” E prosseguiu, explicando como reconhecer um homem a partir dos sapatos que porta, visando discernir se possui boa condição econômica ou é um “pobretão.”

Nunca esqueci o acontecido por minha aparente estupidez. Aliás, a bem da verdade, optei por manter minha ignorância, uma vez que até os dias de hoje, prossigo (ingenuamente ou não) a não classificar as pessoas, muito menos por seus sapatos. O caráter que vem à tona com a convivência constitui para mim a essência do ser humano. Mas, eis que os anos passaram. Talvez, uma década, até que me deparo com uma dessas matérias de revistas de bordo – algumas interessantes – assinada pelo designer e escritor André Carvalhal, sob o título “A moda imita a vida.” De início, lá está a frase: “Diz o ditado que se conhece um homem pelos seus sapatos.” Não contive o riso diante da coincidência, indiferente à surpresa do vizinho de assento no voo.

Porém, não obstante início tão “macabro”, Carvalhal conduz sua fala de forma singular e interessante. Assegura que anunciamos nossa identidade por meio da moda, na acepção de estilo de se vestir, resultante de gostos pessoais ou interferências do meio onde vivemos, incluindo as singularidades de cada um e as variáveis sociais, culturais e econômicas, uma vez que ela favorece nos apresentar diante do outro como, de fato, nos vemos e nos sentimos. São sapatos, vestidos, lingeries, acessórios, etc. como forma de expressão diante do mundo, inclusive como indício de desprezo frente à opinião dos que nos cercam. É a moda como poesia e como inspiração que podem traduzir nossa inspiração e referência frente à arte de viver / sobreviver.

É a moda – na acepção da forma de se vestir no dia a dia – que denuncia nosso enfrentamento ante o olhar de quem integra o meio que frequentamos. Por exemplo, se circulamos em ambientes diferenciados, onde estão pessoas economicamente beneficiadas, a chita e o chitão podem causar certo estranhamento, como símbolo de atitude revolucionária ou de mau gosto. A mesma chita e chitão, num meio de pessoas desfavorecidas, pode passar desapercebida. É preciso entender que não se trata somente do valor material do que usamos. Em linha oposta, a forma como nos vestimos, incluindo os sapatos que portamos, atua como representação via comunicação não verbal e atalho aos olhos dos outros, imprimindo opiniões que se incrustarão em nós. 

Nesta discussão, paira o novo conceito da “moda do bem”, aquela que busca transformar as práticas tradicionais, que prejudicam, de alguma forma ou em alguma intensidade, o planeta. Tal concepção insere as expressões “moda sustentável” e “moda consciente.” No primeiro caso, indústrias e artesãos só trabalham com recursos e procedimentos que não contribuem com os impactos ambientais, o que lhe dá o cognome de eco fashion. A “moda consciente”, a qual Carvalhal se dedica, apesar de próxima da primeira, prioriza os que adotam artigos que rendam um bom diálogo, ou seja, que lhes permitam priorizar o encanto que cerca a moda, como chance única de individualizar e particularizar. Isto é, tanto na vida quanto nos sapatos que usamos, temos a oportunidade suprema de escolher nosso caminho rumo à autenticidade, o que demanda disponibilidade para olhar para si mesmo, longe das interferência dos vizinhos... Em suma, sapatos e caráter não constituem um binômio invencível! Decisivamente, recuso-me a (re)conhecer um homem pelos seus sapatos!

       

Edição: Adriana Magalhães
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