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Mulheres e pontes de Madison

Maria das Graças Targino - [email protected]

26/06/2019 06:40

Ainda em setembro de 1995, o filme “Pontes de Madison”, baseado na obra “As Pontes de Madison: os caminhos da lembrança”, do norte-americano Robert James Waller chegou ao Brasil. Como sempre ocorre com o gênero romance / drama, atraiu, desde o início, olhares contemplativos por parte dos que amam amar e/ou olhares hostis para quem detesta o cinema hollywoodiano, em especial, quando a temática envolve o mais doce do sentimento humano. 

Durante 135min, a película dirigida e coproduzida por Clint Eastwood (ao lado de Kathleen Kennedy), com roteiro inteligente de Richard LaGravanese e Robert James Waller e música de Lennie Niehaus, conta uma história para lá de simples. Após a morte de Francesca Johnson (Meryl Streep), italiana que se tornara uma típica dona de casa americana da zona rural do Estado de Iowa, seus filhos descobrem, através de cartas deixadas como herança pela mãe, um grande amor vivido por ela durante quatro dias com o fotógrafo Robert Kincaid (Clint Eastwood) da revista National Geographic, período em que a família estivera ausente.

Francesca vive com o marido e os dois filhos adolescentes, em tom de submissão, sem muitas escolhas de vida. Ela poderia ser qualquer uma das mulheres – não importa nome nem nacionalidade – que deixa a vida levar embora seus próprios desejos de fêmea, mulher e profissional. Eis trecho de um dos muitos diálogos fascinantes do filme que age como uma tapa em nossos rostos: “Ninguém entende que quando uma mulher resolve casar e ter filhos, por um lado sua vida se inicia, por outro, termina. Ela constrói uma vida de detalhes e simplesmente para, fica imóvel, para que os filhos se movimentem. E quando se vão, levam sua vida de detalhes com eles. Esperam que você retome sua vida. Mas do que era mesmo que você gostava? Ninguém perguntou nesse meio tempo. Nem eles. Nem o marido. Nem você mesma.” 

É a história velha e surrada de que é preciso honrar as escolhas que fazemos ou fizemos, por mais que se fale sobre o avanço na mulher na sociedade hodierna. No caso da Francesca, casamento e família. O vasto elenco acompanha a atuação impecável dos protagonistas, o que consegue transformar uma história aparentemente comum numa lição de vida que conduz a um questionamento instigador e polêmico: as mulheres tendem a ter sua Ponte de Madison ou, no mínimo, idealizar simbolicamente uma ponte que signifique unir o que está separado, ainda que aparentemente oposto, em busca da complementação de uma vida árida ou ávida de amor? Em que pesem os olhares maldosos, confesso sem pudor: “eu tive e vivi minhas Pontes de Madison”, com a curiosa ressalva de que a verdadeira ponte onde o filme foi rodado foi destruída num incêndio, em 2002.

Ao contrário dos mais desavisados, “The bridges of Madison County”, candidato, ano de 1996, ao Oscar na categoria Melhor Atriz (Meryl Streep); ao Globo de Ouro, indicações Melhor Filme e Melhor Atriz; ao Prêmio César como Melhor Filme Estrangeiro, não tem como foco central nem a traição descarada nem o odiado adultério feminino. Afora isto, é muito mais do que a vivência amorosa sublimada em função da família. Para os estudiosos da Psicologia Analítica ou Psicologia Complexa, na linha do estudioso Carl Gustav Jung, discípulo de Sigmund Freud, o amor vivido por Robert e Francesca é um evento genuinamente sincrônico, ou seja, não está ligado por causa e efeito. Nenhum dos dois planejou o encontro ou a paixão, mas ambos precisavam inconscientemente e simultaneamente dessa experiência bendita, que os uniu para sempre e de forma indelével, pelo significado que passou a ter em suas vidas. 

Eis a sincronicidade de que Jung fala: a sincronicidade de almas, que, na realidade, existe para ser compreendida e vivida, pois é mais do que mera coincidência.  E é o que norteia “Pontes de Madison.” Em que pese o espaço curto de amor tresloucado e imensurável, numa série de momentos, a partir da hora em que o homem pede a informação à mulher de como chegar à Ponte, Roberto e Francesca vivem como se vivessem mil vidas, reiterando Guimarães Rosa, quando diz, com convicção: “as coisas mudam no devagar depressa dos tempos.” Os amantes e amados completam-se em sua idealização. Ele vê nela o amor pelo amor, sem máscaras. Ela vê nele a liberdade de ir e vir, solto pelo mundo, como ela própria gostaria de ser... 

Além do mais, concretizando a premissa de que os diálogos do filme são preciosos e reflexivos, Robert diz: “os sonhos são bons [...] por terem simplesmente existido, independentemente de terem sido realizados.” E mais adiante, ao final do diário deixado aos filhos, Francesca acrescenta: “em quatro dias, ele deu-me uma vida inteira, um universo, e deu consistência a todo o meu ser. Nunca deixei de pensar nele, nem por um momento.” Por fim, se vivemos em meio a um oceano de sincronicidades, muitas das quais imperceptíveis ao nosso olhar descuidado, perguntamos: “quem determina tais sincronicidades?” 

Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica.

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