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Cidadania: o direito a ter direitos

Confira o texto publicado na coluna Piauí Presente no Jornal O Dia.

08/10/2019 08:10

A frase do título não é minha; é de Hannah Arendt em seu livro Origens do Totalitarismo. Ao analisar o totalitarismo de direita (nazismo) e de esquerda (stalinismo), Arendt faz um resgate histórico do antisemitismo na Europa (1ª parte) e do uso do racismo como arma ideológica do imperialismo (2ª parte) para finalmente fazer a caracterização dos regimes de totalitários do século XX (3ª parte) como forma de dominação autoritária inédita na história. 

Mas o que me interessa destacar aqui é sua análise da situação dos refugiados, em especial, os expatriados que tinham tido sua cidadania cassada no seu país de origem e não tinham adquirido nova cidadania, e que ela chama de “párias” (está na 2ª parte do livro). É uma contundente crítica à confusão ainda hoje predominante entre cidadania e nacionalidade. Arendt avança na elaboração filosófico-política da ideia de direitos humanos como fundamento da cidadania; e para a definição de cidadania como direito a ter direitos.

Sempre considerei que o conceito de cidadania tem origem na doutrina cristã; é a laicização da ideia cristã de dignidade da pessoa humana. 

Sempre associei também essa teorização de Hannah Arendt às considerações de T. H. Marshall em seu livro Cidadania, Classe Social e Status (da Zahar Editores, e que bem merece uma reedição) sobre a identificação dos direitos civis, políticos e sociais como “elementos” ou dimensões da cidadania. 

Marshall faz o resgate dessa diversificação dos direitos na história da Inglaterra. O súdito, no século XVIII, adquire o status de “indivíduo livre” (do senhor feudal, da corporação, da comunidade local), o que interessava ao capitalismo nascente inclusive. Essa liberdade passa a ser considerada o exercício de direitos civis pela mediação da ideia de cidadania. A ideia se fortalece no século XIX, quando o status de cidadão passa a ser o fundamento de direitos políticos. E apenas com a universalização do sufrágio no século XX (em 1918, na Inglaterra), o status de cidadão (que opera segundo a lógica da igualdade), tem impacto sobre a estrutura de classes (que opera segundo a lógica da desigualdade) fundamentando os direitos sociais. Por isso, a relação entre cidadania e capitalismo (ou estrutura de classe) é sempre conflitiva e tende a ser pendular, com avanços e recuos, mas em forma espiral, pois dificilmente se volta ao ponto de partida.

Esse processo, originário na Inglaterra e na França, depois impactou e continua impactando até hoje em todos os países, inclusive na Pátria Amada Brasil, uma nação que não conseguiu se completar como “comunidade de cidadãos”, com sua modernização conservadora, ou incompleta ou seletiva (como denomina Jessé Souza).

Os direitos civis, políticos e sociais – e diria os direitos culturais ou à diversidade do século XXI – passam pela mediação do status de cidadão. Mais do que elementos eles são decorrentes da cidadania. Esse é também o núcleo da definição de Arendt: o direito a ter direitos.

Ora, o status é sempre uma atribuição num sistema de valores sociais; é uma condição que tenciona com a situação concreta dos indivíduos. Tem a fragilidade das “superestruturas” (Marx), das “probabilidades da relação social” (Weber), da “ação e da palavra” (Arendt), das “instituições imaginárias” (Castoriadis). O status é sempre potencial; para se efetivar precisa criar raízes nos costumes, legitimar-se na escala de valores, organizar-se em ação institucional, ter protagonistas lutando por ele. 

Esse é o dilema da modernização do Brasil. Essa é a raiz profunda da crise institucional que estamos vivendo. Nossas leis nem sempre valeram para regular o comportamento das elites ou punir os poderosos. E nossas leis são pouco conhecidas e quase sempre não valem para proteger os mais fracos. Hipocrisia do lado de cima gera o descrédito dos que se sentem (ou estão) em baixo. Em suma, a cidadania como o status de todos os brasileiros nunca se consolidou; e a representação política nunca foi expressão autêntica da vontade popular.

É o que Jessé Souza tematiza como subcidadania, que tem sua origem histórica na escravidão. Na escravidão situação e condição se confundem; o escravo vive a situação do trabalho compulsório-forçado e tem o status de “objeto”, de não-cidadão.

É o que Mino Carta chama da sobrevivência da mentalidade da Casa Grande que trata o Povo como Senzala.

Nessas circunstâncias históricas, é possível uma ofensiva combinada aos direitos civis, direitos políticos e direitos sociais, como a que estamos vivendo. O economicamente moderno, do ponto de vista da cidadania, se torna a “vanguarda do atraso” (expressão cara a Chico de Oliveira, mas que um dia foi usada por Fernando Henrique Cardoso).

 Sem a força da ideia de cidadania, os direitos aparecem como benefícios ou como favores. É claro que a pobreza cria situações em que o clientelismo descaracteriza os direitos, mas há um componente cultural nessa história. Tanto assim, que favores são solicitados também pela classe média para filhos que acabaram de se formar na universidade.

Por outro lado, direitos podem se tornar privilégios porque não são universalizáveis. Setores da classe média alta, com maior consciência de cidadania e maior capacidade de mobilização, agem corporativamente e adquirem “mais direitos” que os outros cidadãos. Ora “mais direito” fere a lógica da igualdade potencial, sentido maior do status de cidadão.

 É preciso ter clareza nessa situação crítica. Se as Instituições (Judiciário, Presidência, Legislativo, Órgãos da Administração Pública, Igrejas, Imprensa, etc) estão em crise, não se trata de “desconstruí-las”, de “escrachá-las” ou de fechá-las, mas de resgatá-las. Jogar o jogo institucional e não polarizar no jogo sem regras. Resistir e sempre propor alternativa. 

Evidentemente, o jogo democrático se dá entre adversários e não entre inimigos, se dá como disputa entre cidadãos. Se a situação se fecha, como foi o caso do nazismo, fascismo e stalinismo, e, em parte no regime militar no Brasil após o AI-5, a estória é outra...

Fonte: Antonio José Medeiros - Sociólogo, professor aposentado da UFPI
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