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Reforma: carga tributária ou fundo público?

Confira o texto publicado na coluna Piauí Presente no Jornal O Dia.

05/11/2019 08:37

Há dois projetos de Reforma Tributária tramitando no Congresso, um na Câmara dos Deputados, outro no Senado. Foram feitas tentativas de criação de uma Comissão conjunta e de unificação dos projetos, até porque têm muitos pontos em comum. Os “autores intelectuais da proposta” (que não são parlamentares) até que não resistem; parece que é o “ego” dos relatores que está dificultando. Mas, tudo indica que está se fazendo um compasso de espera, aguardando o envio de um anunciado projeto do Governo.

Minha preocupação é que os prazos vençam. As mudanças legais em matéria tributária só valem para o ano seguinte. Assim, se a lei não sair até dezembro, só valerá para 2021; a não ser que seja emenda constitucional que tem validade imediata.

De fato, parece que o Governo vai enviar agora emendas constitucionais e projetos de lei de uma reforma administrativa e sobre o que ele está chamando “novo Pacto Federativo”, que é um dos elementos da reforma tributária. Mas ainda não trata dos aspectos mais fundamentais de toda reforma tributária.

Aliás, esse é o “grande nó” de toda tentativa de reforma tributária no Brasil: concentra-se no rateio dos impostos entre os entes federados – União, Estados e Municípios. O resultado é que nunca se enfrenta outro aspecto importante: a progressividade ou regressividade dos impostos, ou seja, o peso das alíquotas tributárias sobre as diversas classes sociais.

A estrutura tributária no Brasil é regressiva: os que ganham menos pagam proporcionalmente mais imposto que os que ganham mais. Isso porque predomina a tributação indireta ou genérica, como o ICMS e o ISS e não a tributação direta como o imposto de renda, sobre heranças e grandes fortunas (que não existe ainda).

É disso que se trata. Dar maior peso sobre os ganhos maiores, como acontece em quase todos os países. Não tributamos as grandes fortunas e tributamos muito pouco as heranças. Até os Estados Unidos, que têm uma forte tradição de liberalismo econômico, praticam isso. As grandes fortunas pagam mais imposto. E as heranças são fortemente tributadas. Por isso é que são criadas muitas Fundações como “herdeiras” das grandes fortunas. E interessante é que a inspiração não é socialdemocrata, mas liberal. A ideologia do “self made man” (o homem que se faz por ele mesmo) não vê com bons olhos que os herdeiros vivam só do que receberem, sem a contrapartida de seu esforço próprio.

Também vem sendo debatida no Brasil a isenção dos dividendos recebidos por acionistas. Ora, uma coisa é o lucro da empresa, já tributado, que em geral é usado para reinvestimento. Outra coisa é o dividendo, apropriado individualmente, que é usado discricionariamente para consumo de luxo ou nova aplicação.

É verdade que precisamos reduzir o número de impostos, unificando alguns deles. Nada da “maluquice” do imposto único. É verdade também que precisamos simplificar os processos burocráticos no pagamento de impostos. Mas não podemos nos limitar à forma sem entrar no conteúdo: quem paga e quanto paga e sobre o que paga.

Imposto é imposto. Mas o sentido que os cidadãos lhe atribuem depende da transparência, da justiça na sua cobrança e, sobretudo, na sua utilização.

A visão socialdemocrata teorizou a tributação com Fundo Público, mostrando a importância da possibilidade de fazer um bom uso da parcela do PIB administrada pelo Estado para garantir administração (burocracia, segurança e regulação), mas também para garantir serviços públicos (educação, saúde, saneamento) e bem estar (previdência, moradia) além da incentivo ao desenvolvimento (infraestrutura, tecnologia e inovação).

Mesmo depois de 40 anos de ofensiva neoliberal, tomando como referência os mandatos de Margaret Thatcher (1979-1990) e Ronald Reagan (1989-1989), muitos países continuam mantendo seu estado de bem estar social, com forte aprovação da população.

Dez países da Europa continuam tendo um percentual do PIB administrado pelo Estado (carga tributária ou fundo público) acima de 40%: Dinamarca (49%), Suécia (47%), Bélgica (46%), França (44%), Noruega, Finlândia e Áustria (43%), Itália (42%), Alemanha e Islândia (40%). Nos Estados Unidos, esse percentual é de 26,9% e no Japão, 28,3%, onde a previdência é gerida por cada empresa.

São países que garantem direitos sociais num clima democrático, sem maiores problemas de corrupção. O permanente debate sobre o uso dos recursos e a eficiência e transparência na sua gestão são a base da legitimidade do modelo.

Entre os emergentes, na Rússia é 36%; na Índia, 17%, pois mais de 50% da população é rural e vive à margem da economia capitalista moderna. A China é um caso especial: “a carga tributária” é de 17%; é que o “fundo público” é usado como capital de mais de 55 mil empresas estatais que garantem emprego estável e serviços sociais.

No extremo oposto, temos o caso de alguns países árabes onde há uma dominação ainda patrimonialista, no sentido clássico do temo, em que o tesouro do Estado se confunde com o “tesouro” pessoal do soberano. Tanto assim que na Arábia Saudita, as estatísticas da ONU consideram que a carga tributária como percentual do PIB é de apenas 5% e nos Emirados Árabes Unidos e o Kuwait é de apenas 1,5%.

No Brasil, a parte do PIB administrada pelo Estado está em torno de 34%. O problema não a quantidade, mas a qualidade da gestão desses recursos. Não resta dúvida que é um caminho para articular desenvolvimento, inclusão social, sustentabilidade e democracia.

E no caso brasileiro, simplificando o sistema, articulando os níveis federativos – União, estados e Municípios, mas sobretudo fazendo uma estrutura mais justa de tributação.

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