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A relativização dos direitos fundamentais do empregado hipersuficiente

Autor: Vitória Alzenir Pereira do Nascimento. Graduada em Direito pela faculdade Instituto Camilo Filho. Pós-Graduanda em Direito Penal e Processual Penal. Advogada Trabalhista

20/02/2020 20:30

A história não nega que o trabalhador é e sempre foi à parte vulnerável da relação capital versus trabalho, haja vista depender economicamente do empregador e ser impossibilitado de com este tratar em condição de igualdade.

Não é à toa, que o alicerce teórico que norteia esse ramo do Direito é composto por preceitos que visam equilibrar a relação de emprego e, por decorrência lógica, proteger o trabalhador. 

Em contramão com os princípios basilares do Direito do Trabalho, a Lei 13.467/17, que alterou a Consolidação das Leis Trabalhistas, trouxe inovações que abalaram os pilares do ramo justrabalhista. Destaca-se o incentivo a liberdade contratual entre as partes, seja por institucionalizar a prevalência do negociado sobre o legislado, seja por consagrar a autonomia individual do empregado quando este adequa-se a certas circunstâncias.

Conhecida como “reforma trabalhista”, a Lei 13.467/17 confirmou a efetiva tendência flexibilizadora das relações de trabalho, e trouxe inovações que marcam esse caráter regressista, como por exemplo o prestígio da negociação coletiva em diversos pontos em detrimento dos direitos fundamentais do trabalhador.

Sob os direitos elencados no artigo 611-A da CLT estes podem ser negociados coletivamente e prevalecer sobre a lei, quando versar por exemplo, sobre teletrabalho, trabalho intermitente ou enquadramento do grau de insalubridade. 

No dispositivo do §° único do artigo 444 da CLT normatizou-se o instituto da negociação individual e a figura do empregado “hiperssuficiente”, destoando ainda mais das bases principiológicas do Direito do Trabalho. No citado dispositivo o legislador dispôs sobre a possibilidade dessa negociação individual entre o empregador e o empregado sobre as disposições contidas no artigo 611-A da CLT, desde que aquele empregado possua curso superior e receba remuneração igual ou superior ao dobro do maior benefício previdenciário (o que equivale, hoje, a aproximadamente R$12.169,42).

Este empregado não passará mais a ser tratado como uma figura hipossuficiente na relação de emprego estará em situação de igualdade de condições com o empregador, podendo segundo os legisladores buscar seus anseios e firmar pactos individuais. Adota-se a figura do “hipersuficiente”.

A Lei 13.467/2017 ampliou as hipóteses de redução de direitos somente pelo simples ajuste individual entre empregador e empregado, pois estes poderão pactuar sobre banco de horas com compensação mensal, permissão de compensação mensal tácita, quitação anual de dívidas trabalhistas, trabalho intermitente, estipulação de jornada 12x36 com intervalos indenizados, estabelecimento de cláusula de arbitragem, entre outros direitos dispostos no artigo 611-A da CLT.

Na prática, as cláusulas do contrato desse empregado “hiperssuficiente” poderão valer como convenção coletiva e prevalecer sobre a lei. E por que merece especial atenção tal inovação? Simplesmente pelo fato de que a subordinação devida pelo empregado é um dos pressupostos da relação de emprego, o que obviamente impede de as partes desta negociação se encontrem em pé de igualdade.

Ainda que seja empregado com curso de nível superior e com salário superior a duas vezes o teto do benefício do INSS, não o torna economicamente independente de seu empregador, assim como não o torna capaz de negociar seu contrato de trabalho diretamente com aquele. Isso porque a hipossuficiência mostra-se com diferentes facetas, não apenas sobre o conteúdo laboral, mas também sobre todo o contexto social que acompanha o trabalhador.

A hipossuficiência também é ditada pelo mercado de trabalho, a partir da oferta de postos de trabalho, quanto menos abundante a oferta de empregos mais vulneráveis, facilmente cederão diante das condições de trabalho e remuneração que lhes são oferecidas ou impostas. Portanto, mais uma vez não será a maior ou menor remuneração ou escolaridade que trará ao trabalhador poder de negociação.

Dados da realidade brasileira evidencia-se que esse grupo de empregados supostamente “hipersuficiente” corresponde a um percentual muito pequeno da população brasileira. Em 2015, o CEMPRE (Cadastro Central de Empresas) a partir das pesquisas econômicas anuais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apurou que o salário médio do brasileiro empregado de uma empresa, pública ou privada, era de R$ 2.480,00. No mesmo ano, segundo levantamento da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), apenas 14% dos adultos entre 24 e 64 anos haviam concluído o ensino superior no Brasil.

Logo, o empregado que preencher estes dois requisitos (salário e escolaridade), na verdade, faz parte de uma minoria que contrasta com a situação da grande massa de trabalhadores brasileiros. Essa condição, definitivamente, não lhe torna “hipersuficiente”, e tampouco capaz de negociar o seu contrato de trabalho com o empregador. E o temor de perder o emprego existirá independente da categoria do empregado, seja ele um funcionário com alto ou baixo salário, tornando-o um alienado em relação ao próprio ser social que ele representa.

Excepcionalmente é possível que ocorra raras e pontuais situações que o trabalhador ocupe lugar de plena autonomia para a negociação das condições do seu contrato de trabalho, por ser altamente especializado ou mesmo por ser uma celebridade. Entretanto, dificilmente esse empregado, não vulnerável, exerceria sua autonomia privada para reduzir seus direitos, estabelecendo condições de trabalho inferiores ao regramento mínimo legal ou negociado coletivamente. 

Desse modo, a reforma trabalhista sob o argumento de privilegiar a autonomia da vontade, desconsiderou a presunção de hipossuficiência de certa categoria de trabalhador. O princípio protetor raiz de ser do Direito do Trabalho não se constitui apenas pela condição econômica entre as partes, mas sim pela desigualdade fática existente na relação de emprego. A necessidade de emprego, aliado a crise econômica e o reduzido mercado para a classe específica dos trabalhadores hipersuficiente, não o torna capaz de negociar diretamente com o empregador exercendo sua livre manifestação de vontade. 

O resultado desta negociação desigual certamente será a precarização das condições de trabalho, preponderando condições prejudiciais estipuladas pelo empregador e camufladas pela falsa concordância do funcionário.

Pode-se notar que a reforma trabalhista não teve outro intensão senão beneficiar somente um lado da relação de emprego, ao prestigiar a livre iniciativa e os interesses dos detentores do poder econômico. A condição humana foi reduzida e mercantilizada desconsiderando o trabalho como um direito social.

Assim percebe-se que o critério eleito pelo legislador não abarca a complexidade da hipossuficiência do trabalhador. Restando, como única alternativa jurídica diante do artigo 444 §° único da CLT, seria possibilitar ao empregado hipersuficiente negociar, somente, condições mais benéficas, respeitando o mínimo contido na legislação e nas normas coletivas.


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