Portal O Dia - Notícias do Piauí, Teresina, Brasil e mundo

WhatsApp Facebook Twitter Telegram Messenger LinkedIn E-mail Gmail

"Frases de caminhoneiros" estão cada vez mais raras nos para-choques

Silêncio nas estradas: Frases de caminhoneiros desaparecem dos para-choques

07/03/2020 12:39

Eles cruzam as BRs, avenidas, ruas e estradas do país com cargas de toda ordem: alimentos, medicamentos, combustíveis, equipamentos e tantos outros itens que chegam de uma ponta a outra do Brasil pela força do transporte e a determinação de quem o guia. Por isso, é difícil um caminhão passar despercebido, seja por sua importância, imponência ou pela curiosidade de quem sempre busca, ao ver o transporte seguir, encontrar as frases tão características estampadas nos para-choques do veículo. Mas com que frequência você ainda encontra as famosas ‘frases de caminhoneiros’ por aí?

A verdade é que, desde antes da virada do século, os para-choques em tom de fachada perderam impulso e começaram a desaparecer pelo país. Em 1996, uma resolução do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) determinou dimensões e pintura padrão do equipamento. Já nos anos 2000, chegaram as exigências dos adesivos reflexivos, visando maior segurança no trânsito, o que também inibiu a criação das grandes frases em destaque. Foi o começo do fim.


Foto: Jailson Soares/O Dia

As filosofias de versos simples, ditados bem-humorados ou frases de amor e religiosidade foram deixando de se tornar presente na traseira desses grandes veículos; e as histórias por trás de cada frase, também.

Mas alguns caminhoneiros ainda insistem na tradição. As frases religiosas foram as mais encontradas em Teresina, de “Jesus te ama” a “Deus é fiel”, os para-choques seguem como sinal da religiosidade do motorista do país que ainda tem predominância de cristãos.

Há também os que prestam homenagens a familiares que já partiram ou aos que continuam dando tônica para que as viagens tenham um propósito. As frases mais filosóficas ou divertidas, já não aparecem tanto.

Nesta reportagem, O DIA ouviu histórias de motoristas que ainda levam em seus para-choques mensagens que, mesmo na traseira do caminhão, são os que os impulsionam para seguir.


Os para-choques seguem como sinal da religiosidade do motorista do país que ainda tem predominância de cristãos.


Profissão de pai para filho

O baiano Vando Lopes, há mais de duas décadas, escolheu que trilharia, como o pai, a profissão de caminhoneiro. Hoje, aos 44 anos, ele diz nunca ter se arrependido da escolha que fez. O gene pelo amor à estrada permanece vivo na família já que, aos 73 anos de idade, o pai também nunca largou a profissão. “É uma paixão grande”, afirma.

Tão grande que o sentimento do caminhoneiro é de gratidão por ainda continuar fazendo o que quer. Na traseira, lê-se a confirmação de como ele enxerga o instrumento do seu trabalho: presente de Deus. Vando também homenageia a vó nonagenária, dona Izabel, que sempre respeitou e incentivou a carreira dos filhos e neto com uma placa estampada com seu nome.

Mas o amor pelo que faz não esconde as muitas dificuldades da atividade. A precariedade das estradas, os altos custos que envolvem a manutenção do caminhão, o perigo de assaltos e acidentes são destacados como aspectos negativos. Vando, inclusive, já passou por dois acidentes com tombamentos de caminhão. Em nenhuma dessas vezes, no entanto, ele cogitou parar.


O baiano Vando Lopes, há mais de duas décadas, escolheu que trilharia, como o pai, a profissão de caminhoneiro - Foto: Jailson Soares/O Dia

Sobre a solidão que é sempre guiar sozinho um caminhão, ele diz não sentir. “Hoje escolho fazer uma rota pequena, toda semana volto para casa. Como já são muitos anos com o caminhão, a gente sempre roda com muita gente da mesma cidade, faz muita amizade na estrada, nos postos, não dá pra se sentir sozinho”, destaca.

Geralmente carregado de verduras, o caminhoneiro roda muito pela noite – horário escolhido por muitas profissionais. Vando explica existir a prática do “rapidão”, quando os motoristas conseguem diminuir em até cinco horas o tempo de rodagem quando a estrada e a falta de veículos com que cruza favorecem.

Da Bahia para o Piauí, por exemplo, no ‘rapidão’, ele já gastou apenas 18 horas. Enquanto em uma viagem compassada levaria 24 horas. “Mas é algo que a gente evita fazer, já que é perigoso. Mas é uma prática que quase todo caminhoneiro já possa ter feito”, explica.


"Como já são muitos anos com o caminhão, a gente sempre roda com muita gente da mesma cidade, faz muita amizade na estrada, nos postos, não dá pra se sentir sozinho” - Vando Lopes


A estrada que leva é também a que traz

Os olhos de Lucélio da Silva ainda reagem com admiração quando ele fala da profissão que escolheu quando criança. O sonho de ser caminhoneiro tornou-se realidade aos vinte e poucos anos e, hoje, aos 40, é o que garante o seu sustento e o da família de três filhos. Na boleia do caminhão, uma frase destaca o sonho infantil e no para-choques, o lema que se agiganta é “desistir jamais”. Indicação que, mais de uma década nas estradas depois, o pouco reconhecimento e perigo da profissão tem feito o motorista querer ignorar e cogitar abandonar a atividade.

“Hoje, a dificuldade do caminhoneiro é o reconhecimento, aliás, a falta dele. Não vou falar que na turma não tem gente ruim, mas, na verdade, a maioria é de gente de responsabilidade. Por isso, vê a forma como somos tratados, a gente se revolta com isso. Tudo tem que pagar. Para deixar o caminhão no posto, para usar o banheiro, tudo o caminhoneiro tira do bolso”, destaca.


Foto: Jailson Soares/O Dia

A indignação de Lucélio, que é natural do estado de Alagoas, também se estende às poucas iniciativas que o governo federal tomou para melhoria das condições de trabalho da classe. A combinação do combustível caro e pouca valorização dos fretes fazem com que, ao fim do mês, depois de dias longe da família rodando as estradas do país, o trabalhador acumule apenas cerca de dois salários mínimos.

Assim, o que era sonho de criança acaba virando, muitas vezes, um pesadelo. “As estradas são perigosas, o diesel só aumenta, então, infelizmente, a gente pensa em parar. Não porque não gosta do que faz, porque eu gosto muito, mas porque começa a não valer a pena”, conta.

Entre as circunstâncias que desvalorizam o trabalho do caminhoneiro está, como lembra Lucélio, o trabalho de atravessadores. São pessoas que conseguem fretes para os trabalhadores, mas exigem um percentual do pagamento que a empresa está disposta a pagar. Com caminhão do tipo graneleiro, capaz de transportar grandes montantes, ele não recusa trabalhos de nenhuma ordem, mas ainda assim sente as dificuldades de seguir no trabalho.

“Saio de Alagoas, venho para o Piauí, vou para Maranhão, Recife, Bahia. Deus é quem escolhe nosso destino, mas hoje em dia o nosso trabalho fica cada vez mais desvalorizado. Quando eu era criança e sonhava com isso, eu via meus tios, amigos deles, ganhando dinheiro como caminhoneiro. Hoje, não. Hoje é difícil ganhar dinheiro com essa profissão”, ressalta.

Pela idade e a saudade que sempre parecem aumentar, atualmente, Lucélio diz ficar, no máximo, 20 dias fora de casa. Seguindo, não se sabe até quando, o sonho de criança de não desistir de sair e voltar pelas estradas do país.


"Quando eu era criança e sonhava com isso, eu via meus tios, amigos deles, ganhando dinheiro como caminhoneiro. Hoje, não. Hoje é difícil ganhar dinheiro com essa profissão” - Lucélio da Silva


Estrada da saudade

Dos quase 30 anos que Francisco das Chagas dedica ao trabalho como caminhoneiro, sete deles seguem acompanhados de uma saudade profunda. O nome da mãe, Maria Alves, estampado no para-choques do veículo é uma homenagem à matriarca da família que partiu, mas também um amuleto de proteção, para quem anda pelas estradas Brasil a fora.

“Eu sinto que ela me protege por onde for. Nunca sofri nenhum acidente, apesar dos muitos perigos que a gente encontra, e o Salmo 23 também me acompanha: o senhor é meu pastor e nada me faltará”, declama.

Como tantos outros profissionais que encaram a profissão de transportar as riquezas do Brasil na carga de um caminhão, Francisco também lamenta pela pouca valorização da atividade nos dias de hoje.


Foto: Jailson Soares/O Dia

Teresinense, ele faz rotas em um caminhão de nove eixos transportando grãos do Sul do Estado para demais áreas de Estado. “As estradas são muito ruins e, hoje, as pessoas querem pagar um frete muito pouco. É uma vida difícil e, por isso, muita gente desiste”, afirma.

Francisco fala isso porque o excesso de chuvas e falta de manutenção em rodovias têm feito com que caminhoneiros que trabalham com o transporte da safra de grãos passem dias atolados na região Sul do Piauí. Em um percurso de cerca de 200 quilômetros, por conta da condição das estradas, o caminhoneiro chega a passar 12horas.

Pelas andanças, o caminhoneiro vai aprendendo com as dificuldades, mas também confirmando a paixão de quase duas décadas: ter o controle da vida pelo volante do caminhão.

Por: Glenda Uchôa - Jornal O Dia
Mais sobre: