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Petrônio Portella: o senador que negociou o desmonte da ditadura militar

Eleito pelo Piauí, Petrônio dizia em seus pronunciamentos que o regime militar era temporário e que a democracia precisava ser retomada

08/02/2020 09:10

A morte do senador Petrô­nio Portella, 40 anos atrás, deixou a redemocratização do Brasil em suspenso. De forma inesperada, ele morreu em 6 de janeiro de 1980, aos 54 anos de idade, vítima de um ataque cardíaco. A ditadura estava no meio de um deli­cado processo de desmonte. Cabia a Petrônio desde 1977, em nome do regime militar, negociar com a sociedade, a oposição e até políticos go­vernistas os termos dessa transição e, assim, viabilizar a volta da democracia.

Foto: Divulgação Aquivo Senado.

Todas as medidas de abertu­ra tomadas até então tinham as digitais de Petrônio: a derruba­da do abusivo Ato Institucio­nal 5 (AI-5), a volta do habeas corpus para presos políticos, o fim da censura, a proibição da cassação arbitrária de políti­cos, a reorganização do mo­vimento estudantil, a anistia dos adversários do governo encarcerados ou exilados e o fim do bipartidarismo. Para o processo ser concluído, po­rém, faltavam os últimos e decisivos passos: as eleições diretas, a saída dos militares do poder e uma nova Cons­tituição.

Há 40 anos, o Brasil ficou com medo de que, sem mais contar com a ação política de Petrônio, o governo do gene­ral João Figueiredo não resis­tisse à pressão da linha dura e a redemocratização acabasse sendo empurrada para um futuro distante ou até mesmo abortada.

Petrônio Portella tornou­-se senador em 1967, elei­to pelo Piauí. Documentos históricos guardados no Ar­quivo do Senado, em Brasí­lia, mostram que, apesar de pertencer à Arena (partido governista) e ser alinhado aos generais do Palácio do Planal­to, ele insistia, em seus pro­nunciamentos, que o regime militar era temporário e que a democracia precisava ser re­tomada. Mas fazia isso, claro, sem atacar os governos dos quais fazia parte.

— Não vou negar, aqui da tribuna, que as instituições es­tão sob controle. Longe ainda estamos do caminho da demo­cracia — declarou ele, em tom de lamento.

— Vivemos momento de ex­cepcionalidade. Não modela­mos na plenitude o nosso sis­tema político, já aperfeiçoado, mas ainda por tomar a forma definitiva, em que a segurança se concilie com a liberdade — afirmou em outra ocasião.

— O Ato Institucional nú­mero 5 é transitório, como transitório é o processo de qualquer revolução — disse.

Da mesma forma, o senador nunca disfarçou o incômodo diante das violências pratica­das pela ditadura.

— Sinto indignação — dis­cursou ele, depois que policiais invadiram a Universidade de Brasília (UnB) para espancar e prender estudantes. — Mas faço a diferença fundamental entre o governo da República e beleguins policiais que de­sobedecem às autoridades e exorbitam nas diligências. Sua Excelência [o presidente Cos­ta e Silva] fica com a nação, que pede providências e se solidariza com os estudantes, injustamente pisoteados pela política.

— Digo de forma frontal, sem subterfúgios: tanto sou contra a violência daqueles que querem regimes totalitá­rios como sou contra a vio­lência daqueles que, detendo o poder, dele abusam. Esta, a minha norma — respondeu a um senador do MDB (parti­do da oposição) que o acusara de ser crítico da violência dos “subversivos” e complacente com os abusos do governo.

 O negociador: entre a linha dura e a oposição

 Petrônio Portella presidiu o Senado duas vezes, em 1971-1972 e 1977-1978. Foi no último período que ele alcançou o posto de negociador da abertura. O presidente da vez era o ge­neral Ernesto Geisel, que havia chegado em 1974 com o plano de iniciar a “disten­são” (como ele chamava a abertura do regime). Para ajudá-lo na missão, convo­cou Petrônio.

Era uma missão difícil. O senador precisaria dobrar tanto a linha dura (militar e política), que desejava man­ter a ditadura a qualquer custo, quanto a oposição (MDB e organizações re­presentativas da sociedade), que queria dinamitar o regi­me militar já.

Foto: Divulgação Aquivo Senado.

O presidente do Sena­do sabia que, diante das circunstâncias, a abertura só se tornaria realidade se fosse feita passo a passo, de forma controlada e com salvaguardas para aqueles que estavam no governo. Eles, afinal, só aceitariam sair do poder tendo a ga­rantia de que não seriam vítimas de revanche. Pe­trônio, portanto, teria que convencer a linha dura e a oposição a ceder nas suas posições e a aceitar o ca­minho intermediário.

— Cometem um erro gravíssimo os políticos que tentam forçar as pare­des do regime — afirmou o senador, referindo-se à tática oposicionista de ba­ter de frente com o gover­no. — Precisamos ter uma atuação realística. Muitas conquistas haverão de ser pleiteadas, mas que não sejam pelo simples pro­testo, que em si mesmo é estéril, mas por mensa­gens, estudos, contribui­ções.

Geisel identificou no senador do Piauí todas as características de um exímio negociador polí­tico: era cordial, não tra­tava os adversários como inimigos, não enfiava seus pontos de vista pela goela dos interlocutores, ouvia os argumentos con­trários, cumpria a palavra dada, era conciliador, agia com pragmatismo. Eram características que ele já deixava transparecer em seus pronunciamentos no Senado.

— Como defensores da política do presidente Er­nesto Geisel nesta Casa, caber-nos-á ir aonde nos chamarem para a discussão os nossos nobres adversá­rios [do MDB]. Divergen­tes, com certeza, são os nossos caminhos. Mas cre­mos nos nossos, e a força das convicções imprimirá autenticidade aos debates, que serão tão fortes e vee­mentes quanto respeito­sos — afirmou ele, antes de ser chamado para ajudar no desmonte da ditadura.

Pragmático e inovador

Graças à intercessão de Pe­trônio Portella, políticos da oposição que estavam na mira da ditadura puderam escapar da cassação. No caso do sena­dor Leite Chaves (MDB-PR), que fizera um pronunciamen­to comparando o Exército bra­sileiro à SS nazista, Petrônio convenceu-o a discursar logo em seguida derramando-se em elogios ao Exército. No caso do presidente nacional do MDB, deputado Ulysses Guimarães (SP), que redigira uma nota pública comparan­do o general Geisel ao ditador africano Idi Amin, o senador correu ao Palácio do Planalto e conseguiu aplacar a ira do pre­sidente.

Foto: Divulgação Aquivo Senado.

Em diversas ocasiões, Pe­trônio já havia demonstrado o quão pragmático era. Em 1964, como governador do Piauí, ele contrariou a posição oficial de seu partido, a UDN, e condenou publicamente o golpe de Estado contra o pre­sidente João Goulart. Pouco tempo depois, ao perceber que os militares não deixariam o poder, mudou de posição e alinhou-se ao regime.

Seu pragmatismo também havia ficado claro no primeiro período em que comandou o Senado, no biênio 1971-1972. Por causa do AI-5, editado no fim de 1968, o poder de criar leis ficou praticamente todo nas mãos do presidente da Re­pública, e o Congresso acabou reduzido a uma instituição decorativa. Vendo que não conseguiria ter uma atuação política expressiva como pre­sidente do Senado, Petrônio dedicou-se a reforçar a estru­tura administrativa da Casa.

Ele construiu um anexo para abrigar comissões e ga­binetes, reequipou a gráfica, estimulou a publicação de li­vros sobre direito e história e fundou o Prodasen — centro de processamento de dados que tornou o Senado uma das primeiras Casas legisla­tivas do mundo a entrar na era da informática, facilitan­do o trabalho dos senadores especialmente na análise da numeralha dos Orçamentos públicos anuais.

Em 1971, Petrônio abriu uma das sessões plenárias convidando os colegas a co­nhecerem essa maravilha chamada computador:

— Senhores senadores, na parte posterior do Plenário, encontra-se um terminal de com­putador eletrônico, assistido por funcionários de uma firma dentre as muitas interessadas na concor­rência que o Senado

O senador que negociou o desmonte da ditadura militar

Único com acesso direto ao “Olimpo

Petrônio ganhou tanta con­fiança dos generais que passou de mero cumpridor de ordens a conselheiro de presidentes. O deputado federal Tancredo Neves (MDB-MG), um dos líderes da oposição no Con­gresso Nacional, dizia que, de todos os parlamentares do país, o senador do Piauí era o único que tinha acesso direto ao “Olimpo”, isto é, ao princi­pal gabinete do Palácio do Pla­nalto.

Foto: Divulgação Aquivo Senado.

A escolha de Petrônio como negociador do governo foi importante para diminuir as resistências do MDB e abri-lo para as discussões em torno da redemocratização. Justamente nesse momento, o partido co­meçava a radicalizar. Vindo de uma vitória acachapante nas eleições de 1974 para o Sena­do e a Câmara dos Deputados, o MDB acreditava que poderia trazer a redemocratização na marra, contando apenas com o respaldo popular, sem diálogo com o governo.

Uma das bandeiras do parti­do no Congresso era a convo­cação de uma Assembleia Na­cional Constituinte, algo que a ditadura jamais permitiria naquele momento. O general Geisel já avisara que, sim, ha­veria a distensão, porém “len­ta, gradativa e segura”.

Em 1977, com a carta branca dada por Geisel, o presidente do Senado deu início à chama­da Missão Portella. Ele viajou pelo Brasil ouvindo entidades representativas da sociedade, que elencaram as medidas que julgavam necessárias para a abertura. A Associação Brasi­leira de Imprensa (ABI), por exemplo, pediu o fim da cen­sura. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a anistia. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a volta do habeas corpus para crimes políticos, o que libertaria pessoas injustamente pre­sas e reduziria os casos de tortura nos presídios.

Cada passo da Missão Portella era noticiado pelos jornais. Com isso, Petrônio acalmava a sociedade, mos­trando que o governo estava de fato empenhado na redemocratização, e, de forma indireta, forçava o MDB a abraçar, ainda que a contragosto, a pauta do Executivo. Tal aproximação com a oposição foi uma façanha que provavelmente nenhum outro presi­dente do Senado daqueles tempos teria conseguido — como o sena­dor Filinto Müller (Arena-MT), que comandou a Casa em 1973 e estava alinhado com os radicais da ditadura.

— Tenho cansado de animar a Missão Portella. Gosto exatamente de conversa. O que antes não havia eram as conversas — discursou o senador Danton Jobim (MDB-RJ). — O senador Petrônio Portella está tentando, evidentemente, fazer uma agenda. Acho que se deve conversar com toda a gente que seja represen­tativa. A nação não está representa­da apenas pelo seu Parlamento, não apenas por nós aqui dentro. Hoje há toda uma realidade social lá fora, que fala, que se expressa, que pres­siona os governos, que orienta os governos.

— O fato novo na política brasi­leira, graças à Missão Portella, é que os partidos políticos, talvez pela primeira vez em assunto de tama­nha profundidade e complexidade, não estão sendo chamados para o confronto, mas convocados para um acordo que se destina a garantir es­tabilidade política ao país — avaliou o senador José Sarney (Arena-MA).

 De senador a ministro da Justiça

O trabalho de Petrônio pela aber­tura política era tão determinado que ele contava aos interlocutores mais próximos ter a certeza de que, caso a linha dura do regime conseguisse virar o jogo e voltar a ditar os rumos do país, ele seria um dos primeiros políticos a ser cassado e preso.

Dos diálogos da Missão Portella, nasceu a Emenda Constitucional 11, de 1978, que sepultou praticamente toda a legislação abusiva da ditadura, incluindo os Atos Institucionais. A proposta que foi aprovada pelo Con­gresso Nacional havia sido redigida pelo próprio senador.

Graças a esse feito, ele foi convida­do em 1979 pelo presidente seguin­te, o general João Baptista Figueire­do, a assumir o Ministério da Justiça e dar prosseguimento à abertura po­lítica. Sob Petrônio, o ministério dei­xou de agir como polícia do regime, começou a fechar os porões da dita­dura e passou a ter uma atuação emi­nentemente política. Como ministro da Justiça, ele escreveu o projeto da anistia e o do fim do bipartidarismo, que também receberam a chancela do Congresso e viraram lei.

Petrônio ocupou a cadeira de mi­nistro por menos de um ano. Quan­do o ataque cardíaco o matou, no início de 1980, ele estava no auge da carreira política — Figueiredo acre­ditava que ele seria seu sucessor na Presidência da República — e ainda tinha muito a fazer pela abertura po­lítica. Muitos temeram pelo futuro da redemocratização. Os receios, po­rém, não se confirmaram. O proces­so continuou em execução, bem ali­cerçado nas medidas tomadas pelo governo graças à ação de Petrônio em seus últimos três anos de vida. O poder seria devolvido aos civis em 1985, e a Constituição democrática seria assinada em 1988.

O ex-senador Mauro Benevides, que na década de 1970 pertencia à bancada do MDB, eleito pelo Ceará, avalia hoje:

— Não é contraditório que Petrô­nio Portella tenha sido um democra­ta e, ao mesmo tempo, um homem do regime militar. No MDB, éramos muitos lutando pela abertura, mas nossa ação, como oposicionistas num momento de anormalidade, tinha alcance limitado. Ele, mesmo sendo um só, conseguiu muitas mu­danças concretas por estar dentro do governo. Se Petrônio lutou pela redemocratização, ele foi, sim, um democrata.

O jornalista Zózimo Tavares, au­tor do livro Petrônio Portella — uma biografia, diz que o senador e minis­tro piauiense não tem o reconheci­mento que merece:

— Diversos políticos que inte­gravam a oposição e militantes que enfrentavam a ditadura são exal­tados hoje, enquanto Petrônio permanece esquecido. É o preço que ele paga por ter pertencido ao regime. Isso é uma injustiça. O que Petrônio fez foi optar pelo pragmatismo, buscar resultados. E ele conseguiu os resultados.

Fonte: Agência Senado
Por: Redação
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