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UM ANO DE PANDEMIA NO PIAUÍ: Por que não aprendemos a lidar com a Covid-19?

Parcela significativa da população segue ignorando e descumprindo as orientações sanitárias para reduzir a transmissibilidade do vírus

20/03/2021 10:24

Sexta-feira (19) completou exatamente um ano do primeiro paciente diagnosticado com o novo coronavírus (Covid-19) no Piauí. Ao longo deste período, os municípios piauienses acumulam, segundo dados coletados na última quinta-feira (18) pelo painel epidemiológico da Secretaria Estadual de Saúde (Sesapi), mais de 190 mil casos confirmados e 3.740 óbitos causados pela doença, que voltou a ganhar força nas últimas semanas e tem alertado as autoridades para o colapso na rede pública de saúde.

Foto: Jailson Soares/ODIA

Por outro lado, mesmo com números tão elevados e assustadores, uma parcela significativa da população segue ignorando e descumprindo as orientações sanitárias para reduzir a transmissibilidade do vírus, como o uso de máscara e o distanciamento social. Em uma rápida caminhada pelo Centro de Teresina, a equipe do Jornal O DIA flagrou diversas pessoas em situações de aglomeração, sem a utilização de itens de proteção individual indispensáveis ou usando-os de maneira inadequada.

Servidor público, Marcos Leonardo Freire de Araújo comenta que, no começo da pandemia, a adaptação ao uso diário dos equipamentos de proteção individual à Covid-19 foi difícil, mas ressalta que hoje não é mais um problema. A máscara, por exemplo, o acompanha até mesmo durante os exercícios físicos em via pública, porém, ele não apenas lamenta como teme pela sua saúde quando se depara com outras pessoas sem a mesma preocupação.

“Há um instinto de moralidade. Quando vejo uma pessoa sem máscara, começo a ponderar. Me chama muita a atenção o fato dela não estar protegida, sendo que sabemos que todos precisamos tomar cuidado, principalmente agora que a pandemia chegou em um ponto muito crítico. Então essa exposição que a pessoa se submete e expõe outras pessoas, a gente moralmente já recrimina e olha diferente”, argumenta o arquiteto.

Além disso, há também outros cuidados sanitários básicos que, às vezes, por desatenção ou até mesmo por cansaço com a situação, passam despercebidos, como a higienização de compras em supermercados e demais estabelecimentos comerciais para evitar a circulação do vírus dentro de casa. A jornalista Lorena Linhares conta que, apesar da preocupação com a situação, com o tempo, acabou relaxando quanto aos cuidados.

“Mais por esquecimento mesmo. Quando começaram a flexibilizar o funcionamento das atividades e parecia voltar ao normal, também relaxamos em relação a essa questão. Nem sempre que chego em casa com as compras lembramos de fazer a higienização como fazíamos no começo da pandemia. Mas sei que isso é completamente errado, pois a Covid pode ser transmitida de muitas maneiras”, pontua a profissional de imprensa.

A aposta na imunidade coletiva e a chegada de uma nova onda

Especialista avalia que confiar em estimativa da população que já havia tido contato com o vírus foi um erro

Além de incentivar a população piauiense sobre a necessidade de redobrar a atenção com os cuidados sanitários individuais, outra forma encontrada pelas autoridades públicas para conter a transmissão da doença em todo o Estado logo no início da pandemia foi a adoção, através de decretos e protocolos, de diversas medidas restritivas ao funcionamento de determinados serviços, sobretudo os considerados não essenciais, a fim evitar a aglomeração de pessoas.

Para Carlos Henrique Nery Costa, médico infectologista e professor doutor da Universidade Federal do Piauí (Ufpi), as primeiras providências estabelecendo a suspensão das atividades coletivas conseguiram, naquele momento, retardar o avanço da pandemia. “Houve um aprendizado com isso, a doença levou um tempo para chegar ao pico e fomos conduzindo de uma forma, baseado em uma expectativa que se mostrou um erro, que seria a imunidade coletiva”, ressalta.

Foto: Assis Fernandes/ODIA

Àquela altura, dados de diversas pesquisas epidemiológicas encomendadas pela Secretaria de Estado da Saúde do Piauí (Sesapi) apontavam para o grande percentual da população que já havia tido contato com o vírus e, por consequência, produzido anticorpos. Isso levou muitos a acreditarem que o pior momento da pandemia estivesse superado. “Existiu uma dessintonia e entendemos mal o que seria essa imunidade coletiva, ou de rebanho, que tão cedo será atingido ou até mesmo nunca”, frisa o especialista.

Acreditando que a Covid-19 estava sendo vencida, com a queda do número de internações e óbitos pela doença, o poder público iniciou a flexibilização gradual das restrições impostas e também desmobilizou parte da estrutura de saúde montada temporariamente para suplementar o atendimento aos pacientes positivados, como os hospitais de campanha. A falsa sensação levou muitos a crerem que, mesmo que aos poucos, estávamos voltando à normalidade e o que se mostrou um engano.

Isto porque o vírus produziu variantes mais resistentes e agressivas que, somadas às aglomerações das festividades natalinas e carnavalescas, causaram uma explosão de novos casos e vítimas fatais em todo o país, obrigando governadores e prefeitos a tomarem novas medidas.

“Se não tivermos força suficiente para conter a transmissão, essa doença vai ficar aí por muito tempo, com as tragédias que temos visto. O que acontece hoje é muito pelo descuidado que as pessoas têm em conter a transmissão da doença”, pontua Carlos Nery.

AGLOMERAÇÕES E FESTAS CLANDESTINAS

A chegada de uma nova onda pandêmica, responsável por aumentar a lotação de enfermarias e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) nos hospitais públicos e privados do Piauí, obrigou o retorno das restrições aos estabelecimentos comerciais e também a implantação do toque recolher em determinados horários do dia. Mais uma vez, a tentativa de conter o rápido avanço da doença tem esbarrado no constante desrespeito de parte da população às regras impostas pelo poder público, fiscalizadas pela Polícia Militar do Piauí (pm-pi), pela Diretoria de Vigilância Sanitária (Divisa) e respectivos órgãos municipais em todo o Estado. Só nas operações realizadas entre os dias 24 e 28 de fevereiro deste ano em todo o Estado, foram cerca de sete mil pessoas abordadas e orientadas sobre as regras contidas no decreto estadual, além de mais de dois mil estabelecimentos fechados, com a aplicação de Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e autuações de infrações. “Estamos recebendo muitas denúncias porque as pessoas estão se aglomerando em festas e reuniões em residências, sítios e chácaras clandestinamente e isso está dificultando o nosso trabalho, pois não podemos adentrar uma propriedade particular sem ordem judicial”, disse naquela ocasião Tatiana Chaves, diretora- -geral da Divisa.

Foto: Divulgação/PM 

Tratamento precoce e a busca por novos medicamentos

Infectologista ressalta importância da ciência e critica movimentos antivacinas

Além da não obediência às orientações sanitárias de prevenção à Covid-19, muitas pessoas também têm desobedecido outra importante recomendação básica das autoridades médicas: o uso de remédios sem prescrição de um profissional ou sem comprovação de que seja capaz de tratar a doença.

“Essa coisa de remédios mágicos, sempre existiu (...) as pessoas não são exatamente racionais ou tomam decisões baseadas na cognição, elas são muito intuitivas. Elas se deixam levar, na maior parte das vezes, por diversos interesses”, alerta o médico infectologista Carlos Henrique Nery Costa.

Foto: Assis Fernandes/ODIA

O especialista cita o caso do tratamento com o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, repercutida por um “charlatão francês”, repercutida pelo presidente dos Estados Unidos e replicada por “outros políticos oportunistas”, além de medicamentos como ivermectina para o chamado “tratamento precoce”.

As substâncias, no entanto, não apresentaram resultados satisfatórios em pesquisas científicas e não são recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) para quaisquer outros propósitos diferentes daqueles para os quais seu uso está devidamente autorizado.

Além de criticar protocolos milagrosos, quase sempre defendidos por pessoas sem credibilidade científica, o infectologista rechaça os movimentos antivacina, que têm ganhado força principalmente nas redes sociais. “As vacinas funcionam de fato e são capazes de reduzir, absurdamente, a mortalidade pela doença”, enfatiza.

RISCOS DA DESOBEDIÊNCIA ÀS RECOMENDAÇÕES SANITÁRIAS

O descumprimento das medidas sanitárias individuais, como o não uso de máscara, e de distanciamento social, participando de situações com aglomerações, aceleram a circulação da Covid-19 e, por consequência, também colocam em risco a saúde coletiva, é o que explica e alerta o médico infectologista Carlos Henrique Nery Costa. “Os riscos são imensos. Na medida em que se aumenta o grau de contato, também aumenta exponencialmente a probabilidade de transmissão do vírus. É uma coisa tão óbvia e elementar para uma doença infecciosa, que sai pela respiração e depende do contato. As pessoas sabem que estão expondo a si mesmas e os outros”, explica o especialista. O médico defende a necessidade de uma “intervenção do Estado” como agente “regulador” do cumprimento das medidas de prevenção à doença, a exemplo do que aconteceu em outros países. Ele cita o exemplo da China, que apesar de ser o epicentro da pandemia, conseguiu controlar os casos através de ações efetivas. “Fizeram a coisa certa, combateram a transmissão do vírus. Mesmo tendo pago um preço inicialmente, sua economia está flamejante, enquanto nós do Ocidente estamos sofrendo com a economia parada, uma tragédia, com pessoas passando fome basicamente por falta de consistência das políticas públicas”, pondera o médico. Por fim, Carlos Nery reforça o apelo, para a população e poder público, que realmente deve ser feito neste momento em que a cobertura vacinal é baixa. “Que não deixemos de lado o que realmente funciona: o distanciamento social, as normas de higiene, a quarentena, a higienização das mãos e, principalmente, o uso de máscara. Isso é sólido e não pode ser abandonado”, conclui.

NEGACIONISMO E REFLEXOS

Somado a falta de esclarecimento científico e a desinformação difundida diariamente sobretudo através das redes sociais, o comportamento displicente da população em relação às medidas de prevenção ao coronavírus é influenciado também por um discurso negacionista. É o que avalia Francisco Mesquita, professor doutor da pós-graduação em Sociologia da Ufpi.

Foto: Jailson Soares/ODIA

“Nesse período da pandemia no país, temos um discurso negacionista e bastante ignorante do ponto de vista de reconhecer o problema causado pela doença. Muitas pessoas tendem a acreditar nesse discurso e achar que estão imunes, não usar e criticar o uso de máscara, a ciência e os procedimentos médicos”, reitera o docente. Para o sociólogo, outro fator que contribui para esta situação é a ausência de ações unificadas que, segundo ele, deveriam ser coordenadas nacionalmente pelo Governo Federal e Ministério da Saúde. “Na medida que o presidente fala uma coisa, ministro outra e governadores e prefeitos fazem outra diferente, a população fica perdida, sem saber a quem seguir e por onde se orientar”, argumenta.

Um exemplo recente dessa incongruência de ações acontece entre o Governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina. Isto porque, enquanto o governador Wellington Dias (PT) determinou o fechamento do comércio durante dois dias da semana, o prefeito Dr. Pessoa (MDB) autorizou o funcionamento desses estabelecimentos na Capital.

FATOR PSICOLÓGICO

Como mencionado anteriormente, há indivíduos que acabam relaxando com os cuidados sanitários não por discordância, mas por um cansaço mental causado pela nova rotina, mesmo há um ano de pandemia. Exatamente por isso, a psicóloga Betânia Soares considera que este é um problema que também deve ser observado sob a ótica da psicologia. “Considerando que somos seres relacionais, a dimensão do cuidado com o outro e com o mundo também é importante (...) Não é ignorar ou fingir que o cansaço não existe. Acolher e procurar formas de manter a saúde possível pode ser mais frutífero”, pontua a profissional, salientando a importância da procura por suporte qualificado quando necessário.

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