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"œNão adianta cancelar sem discutir os motivos", destaca pesquisadora

Em entrevista ao O DIA, Daniela Marino, mestra em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, debate aspetos relacionados à cultura do cancelamento, ligados ao privilégio de grupos sociais dentro da sociedade.

28/03/2020 09:15

A cultura do cancelamento e os privilégios de quem não precisa ter empatia. Este é o tema do artigo de Daniela Marino, a Dani, que é mestra em Ciências da Comunicação pela ECA/ USP, e é uma das criadoras de conteúdo do site Minas Nerds. A pesquisadora debate aspetos relacionados à cultura do cancelamento, ligados ao privilégio de grupos sociais dentro da sociedade. Em entrevista ao O DIA, ela destaca: “não adianta cancelar influencer sem discutir os motivos pelos quais seu discurso foi problemático. É preciso uma mudança profundaem nossa cultura para que uma pessoa não haja de forma racista apenas por medo de ser cancelada”.


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Em seu artigo, você não se propõe apenas a falar sobre este fenômeno do cancelamento, mas discutir sobre privilégios, branquitude e segregação. Destaca a invisibilização secular de grupos dentro da sociedade, como pessoas negras e a população LGBT. Por que chamar atenção a isto é tão importante quando pensamos em articulações (cancelamentos) que promovem retaliação a certas atitudes consideradas inapropriadas dentro e fora do ambiente da internet?

Porque nenhum evento social pode ser descolado de um contexto ou contextualização, embora grande parte das discussões na internet se deem sem o devido aprofundamento. Há décadas, diversas minorias buscam chamar a atenção para o fato de que certos grupos são deliberadamente apagados de determinados espaços devido a questões de gênero, orientação sexual e cor da pele. As pautas identitárias lutam justamente para que essa invisibilização acabe. No entanto, as pessoas integrantes das classes que são consideradas socialmente dominantes nunca se importaram com essas pautas e ainda criticam as lutas identitárias como sendo "mimimi".


“Não adianta cancelar sem discutir os motivos”, destaca pesquisadora. Arquivo Pessoal

Ou seja, no momento em que pessoas brancas e famosas pas sam a sofrer consequências de seus discursos e correm o risco de perder certos privilégios, essas mesmas pessoas que nunca se importaram com o apagamento de outros grupos, apelam para o bom senso da coletividade para que não cancelem seus pares. Então, não há um aprofundamento nessas discussões a ponto de que as pessoas percebam que o cancelamento sempre existiu.

Você também destaca sobre o fato de que “todas as mulheres no meio nerd sofrem algum tipo de boicote por parte de homens que temem nossa ascensão em um meio que consideram ser apenas deles”, e mostra exemplos do que já teve de lidar. Como você, enquanto produtora de conteúdo, tem trabalhado com isto ao longo dos anos?

No começo, eu tinha sintomas de pânico, sofria com uma forte síndrome do impostor. Com o tempo, fui percebendo que a maioria dos homens que nos expõem e nos insultam é covarde e incapaz de produzir qualquer coisa com o mesmo nível de qualidade que nós. Ainda assim, há certos momentos que eu repenso certas publicações. Já tivemos que apagar posts devido a ameaças de incels*, por exemplo. * termo diminutivo da expressão "involuntary celibates", ou celibatários involuntários. Grupo radical que dissemina discurso de ódio.

Em 2018, com a polarização crescente no país, os cancelamentos a empresas, produtos, artistas, aconteceram em forma de enxurrada.Agora, em 2020,dá pra sentir que muito doque foi boicotado lá atrás já não parece, em uma rasa explicação, "tão ruim assim".Este também é um fenômeno que ressalta esta característica da efemeridade advinda das redes sociais?

Com certeza. A verdade é que não temos como prever todas as consequências desses eventos porque eles acontecem enquanto nós vivemos, ou seja, as teorias não dão conta de contemplar tudo que tem acontecido em relação às redes. Há perspectivas extremamente pessimistas e apocalípticas e há outras mais otimistas. Mas, de maneira geral, não dá pra acreditar que uma celebridade perder um patrocínio é o mesmo que uma pessoa negra ser baleada por andar com um guarda-chuva.O racismo e o machismo são estruturais, existem há séculos e suas consequências são muito mais devastadoras do que um youtuber perdendo seguidores. 

As discussões em torno dessa conduta de cancelamento ganha mais e mais atenção. Como você citou no texto: podcasts, reportagens em grandes veículos online, conteúdos em mídias sociais já se debruçaram sobre o fenômeno, é preciso pensar menos em cancelamento e mais em como podemos desenvolver a empatia e alteridade nesses tempos tão difusos?

Justamente! Acredito que esse seja o ponto. Não adianta cancelar influencer sem discutir os motivos pelos quaisseu discurso foi problemático. É preciso uma mudança profunda em nossa cultura paraque uma pessoa não haja deforma racista apenas por medo de ser cancelada, mas porque entende que todos os seres humanos merecem respeito independentemente de sua cor de pele, gênero, orientação sexual ou etnia.

Por: Glenda Uchôa - Jornal O Dia
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