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Povoado Alegria: população está consumindo água contaminada

Pesquisa desenvolvida por estudante do Ifpi aponta a presença de coliformes fecais na água consumida pelos moradores do povoado. Aquífero da região também está contaminado.

27/10/2019 17:16

Água de má qualidade e aumento do risco de exposição a doenças. É esta a realidade de várias famílias que vivem no Povoado Alegria, na zona Rural Sul de Teresina, onde muitas residências ainda utilizam um mecanismo antigo de captação de água: os poços cacimbões. Estes poços consistem basicamente em escavações sem revestimento próximo a margens de reservatórios de águas superficiais.

Localizado muitas vezes nos fundos das casas, estes poços geralmente são escavados em áreas inapropriadas, como perto de fossas e cemitérios, por exemplo. A água que eles armazenam, também na maioria das vezes, possui qualidade duvidosa e às vezes vem contaminada com patógenos e materiais nocivos à saúde.


Moradora retira água de poço cacimbão no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Foi isso que constatou a pesquisa desenvolvida pela estudante Francielly Lopes Silva, do Instituto Federal do Piauí (Ifpi). Sob orientação do professor Érico Gomes, a jovem investigou a qualidade água utilizada para consumo pelos moradores do Povoado Alegria e chegou à conclusão que, em alguns casos, o líquido é contaminado por coliformes fecais, o que coloca em risco a saúde da população daquela região.

A reportagem do Portal O Dia foi até o povoado acompanhada de Francielly e do professor Érico. No local, eles explicaram que esses poços cacimbões utilizam a água de um aquífero superficial, chamado de aquífero livre, e que este aquífero está sujeito a vários tipos de contaminação. 


A estudante Francielly Lopes e o professor Érico Gomes no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Desde uma fossa, um galinheiro, um cemitério. Aqui não tem saneamento básico também e é um local onde tem concentração de potenciais poluentes. Todos esses contaminantes vão infiltrar nesse solo e no período da chuva, tanto o nível do lençol freático sobe, como a própria chuva, ao penetrar no solo, leva esses patógenos para a água. Então temos contaminação por diferentes fontes”, explica o professor Érico.

Ele lembra que, quando um morador cava um poço cacimbão, ele não percebe todos os fatores de contaminação nas proximidades e que isso acarreta num potencial para infectar a água que irá consumir. No local, por exemplo, foi constatada a presença de vários contaminantes, entre eles galinheiros, fossas sépticas e até mesmo um cemitério. 

“Eles acham que estão com água de boa qualidade, mas isso tudo vai lentamente contaminando o aquífero. Geralmente consomem esse líquido sem fervura, então temos também a circulação de doenças simples de veiculação hídrica atacando a comunidade”, pontua.


Um dos contaminantes é um cemitério localizado a poucos metros dos poços cacimbões. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Francielly, autora da pesquisa, explica que estes poços cacimbões foram construídos no final da década de 1990, até que a Prefeitura construiu um poço que distribuiria água para toda a população. A partir do momento em que houve água nas torneiras, muitos poços ficaram inutilizáveis, alguns foram utilizados como fossas e outros abandonados e até mesmo soterrados.

Em sua pesquisa, Francielly encontrou 60 poços cacimbões, mais da metade deles desativados e alguns soterrados. Mas 22 ainda são utilizados para alguma coisa, como para armazenar água para consumo próprio, para lavar louça ou somente para aguar jardins. Para a análise, cinco poços foram selecionados: quatro cacimbões e o poço tubular que distribui água para toda a comunidade


Francielly é a autora da pesquisa e moradora do Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Todos os poços cacimbões deram contaminados, ou seja, fora da legislação. Porque a portaria de consolidação nº 5 do Ministério da Saúde diz que a água para consumo humano não deve ter bactéria do grupo coliforme, nenhuma bactéria em 100 ml de água. Se já estiver contaminada, tem que ter um tratamento prévio, cloração ou fervura, e a água desses poços não ficou dentro dos parâmetros”, explicou Francielly.

Um dos pontos analisados pela estudante na pesquisa foi justamente os locais onde estes poços cacimbões são construídos. Geralmente, os moradores cavam na área mais baixa da propriedade, onde a água chega com mais facilidade, e na parte mais alta da propriedade fica a casa e a fossa ao lado da casa. Por gravidade, aquele material migra através da água e vai contaminando o poço que está logo abaixo. Cria-se, assim, o cenário para a contaminação do aquífero superficial. 


O professor Érico Gomes fala sobre os critérios que devem ser observados na construção de um cacimbão. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

“Quanto mais perto do rio, mais fácil encontrar a água, fica mais raso, por isso às vezes tendem a cavar num local mais baixo da propriedade, porque o nível do lençol freático fica mais perto da superfície. Dá menos trabalho cavar o poço, porque fica mais raso, mas ao mesmo tempo a possibilidade de contaminação vai ser maior”, afirma o professor Érico.

Quando se constrói um poço, o ideal é isolar a parte superficial em até 12 metros. Esse isolamento, segundo ele, impede que a água mais superficial caia dentro do poço. Até mesmo os poços tubulares possuem uma sapata de proteção e a norma vigente diz que essa estrutura tem que ser de concreto, de 1,5 metro por 1 metro em volta do poço para impedir que as águas superficiais penetrem entre a parede da escavação e o solo.

“Às vezes nem manilha tem. As pessoas só cavam o poço e revestem com alguma madeira ou tijolos. Pela proximidade com o cemitério, com fossas no entorno, provavelmente o lençol freático deva estar todo contaminado pelo que a gente chama de pluma de contaminação, que é a dispersão, dentro do lençol, de poluentes, além da própria falta de saneamento, que é outra fonte de contaminantes”, destaca.


Alguns dos poços são feitos com manilhas. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Preocupa também, segundo os pesquisadores, o fato de que em Teresina e muitos locais do Piauí esses poços serem escavados em solos arenosos que são porosos e permeáveis, o que facilita a infiltração da água com rapidez e também a contaminação mais rápida. Diante de todo o achado, os pesquisadores lembram que é preciso que as comunidades tenham cuidado de, ao ingerir a água de um poço cacimbão, ferver e fazer um tratamento prévio para poderem consumir com segurança e sem riscos à saúde.

Moradores acreditam que a água é própria para consumo e usam como alternativa

De acordo com os moradores do povoado, a água dos poços cacimbões só é utilizada quando eles não podem contar com a água do poço tubular instalado na região. Este poço foi construído pela Prefeitura atende a 90% do Povoado Alegria, mas os moradores reclamam que a falta de água nele é frequente, o que deixa como única alternativa o consumo da água sem controle de qualidade dos cacimbões.

Um desses moradores é o aposentado Antônio Chaves de Sousa, 73 anos, que mora no Povoado Alegria desde que nasceu. Aposentado, o morador relata que construiu o poço da sua residência há mais de 30 anos e, apesar de ser contemplado com o abastecimento do poço tubular, o cacimbão ainda é uma opção quando falta água na comunidade.


O aposentado Antônio Chaves de Sousa retira água do poço cacimbão localizado em sua residência. (Foto: Jailson Soares/O Dia) 

Apesar de ser um dos poços em que foi constatada a presença de coliformes na pesquisa realizada pelo Ifpi, o aposentado é firme em afirmar que a água do cacimbão é límpida e própria para consumo. “O olho d’água dele fica perto da areia grossa e não “baldeia” de jeito nenhum. Pode ser no inverno ou no verão, é sempre limpa. Ele é tampado todo tempo para proteger, porque tenho quatro crianças em casa, até mesmo pra não cair nada dentro”, afirma, tomando a água com as mãos e levando à boca.


“O olho d’água dele fica perto da areia grossa e não “baldeia” de jeito nenhum. Pode ser no inverno ou no verão, é sempre limpa" - Antônio Chaves de Sousa, morador do Povoado Alegria


Além de seu Antônio, outras 14 pessoas residem na casa feita de tijolos e sem reboco. De família humilde, o aposentado relata que usa água de poços cacimbões desde criança. Somente com a chegada do poço tubular que passou a pagar uma taxa de R$15 pelo consumo. “Eu morava aqui na beira do rio com a minha mãe, lá também era cacimbão. A gente carregava o galão num varal, um na frente e outro atrás”, relembra.


Aposentado Antônio Chaves de Sousa relata que usa água dos poços cacimbões desde criança. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

O banho é um dos usos dados à água dos poços cacimbões. Quando o abastecimento de energia é interrompido e a água do poço tubular não chega às casas das famílias, moradores como o seu Antônio utilizam os cacimbões para dar conta dos afazeres domésticos. Nesses dias, até mesmo as crianças tomam banho com a água retirada desses poços. “Eles gostam porque a água é fria. Você pode ver que não tem um granito”, finaliza o aposentado ao dar banho em um dos seus bisnetos.


Aposentado Antônio Chaves de Sousa dá banho em uma criança da família. (Foto: Jailson Soares/O Dia

Posto de saúde fica atento a sinais de doenças relacionadas ao consumo da água

Desconforto abdominal, ânsia de vômito, náuseas, dores de cabeça, diarreia e às vezes até febre. São esses os sintomas mais comuns encontrados nos pacientes que buscam atendimento no posto de saúde do Povoado Alegria. Segundo os profissionais da unidade, eles estão intimamente relacionados ao consumo de água sem o devido tratamento.

A equipe da unidade de atenção de básica se mantém vigilante quanto a esses casos e, além do tratamento daqueles que buscam o posto, eles também fazem o acompanhamento nas casas e um trabalho de conscientização da necessidade de se ter certos cuidados com a água que eles ingerem.


Posto de Saúde localizado no Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Michelle Leane, enfermeira e coordenadora da UBS do Povoado Alegria, explica que as visitas são feitas quase que diariamente e o foco são as crianças, pessoas idosas e puérperas, ou seja, as pessoas consideradas mais vulneráveis em relação ao consumo desta água.

“Recebemos da FMS [Fundação Municipal de Saúde] hipocloritos de sódio e os agentes fazem essa educação nas residências, pra que eles usem esse hipoclorito. Eles podem pegar esse material gratuitamente e para usar você dissolve um frasco a cada 3 litros de água, inclusive para fazer a limpeza”, explica a coordenadora.


Michelle Leane, coordenadora do Posto de Saúde do Povoado Alegria. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Quando são detectados casos de diarreia, por exemplo, os médicos da unidade imediatamente notificam à equipe de vigilância da FMS que faz o acompanhamento. São investigados, nesses casos, o que o paciente consumiu antes de sentir os sintomas, aplicado um tratamento à base de soro e antitérmicos, em casos de febre, enquanto os profissionais vão atrás da causa da doença.

Antigamente, os casos de doenças relacionadas à contaminação da água e de alimentos consumidos pelos moradores do Alegria eram mais frequentes, mas atualmente a demanda tem sido menor, devido, principalmente, ao trabalho de conscientização feito pelos agentes de saúde.


Quando são detectados casos de diarreia, por exemplo, os médicos da unidade imediatamente notificam à equipe de vigilância da FMS que faz o acompanhamento.


É isto o que pontua a agente de saúde Ana Maria Morais. De acordo com ela, o principal problema é os moradores pensarem que só porque a água que consomem está limpa só porque é límpida. 

“Estou há 25 anos na área e praticamente sei todas as casas que têm poço cacimbão e as que não têm. E a gente vê que naquelas casas onde a água é consumida do poço cacimbão, os casos mais frequentes de diarreia, de vômito, mal-estar. Hoje a gente trabalha em cima da orientação: tem que usar o filtro, tem que usar o hipoclorito e como a população está sendo educada, os casos de diarreia e infecção intestinal diminuíram bastante”.


Ana Maria Morais é agente de saúde do Povoado Alegria há 25 anos. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Contraponto

Os populares disseram que a Águas de Teresina que atende a região com a distribuição de água encanada. No entanto a empresa negou.

O Portal O Dia procurou a Águas de Teresina, responsável pela produção e distribuição de água na Capital e a empresa disse que atende somente o perímetro urbano de Teresina, conforme prevê o contrato de subconcessão, e que a região do Povoado Alegria não entra nessa área de abrangência. A Águas de Teresina argumentou, por fim, que não pode responder por aquela região porque não opera por lá.

Durante visita ao Povoado Alegria, a equipe do O Dia, acompanhada dos pesquisadores do Ifpi, constatou que o terreno onde está instalado o poço tubular está repleto de lixo, incluindo lixo hospitalar. A avaliação dos pesquisadores mostrou que no local não há sapata de proteção obrigatória para impedir a infiltração de poluentes no solo e, consequentemente, no aquífero.

Procurada para falar sobre o poço tubular da Prefeitura que atende ao Povoado Alegria, a Superintendência de Desenvolvimento Rural (SDR) disse que os dois poços existentes na área foram desativados pela própria PMT há 10 anos quando a Agespisa se tornou responsável pelo abastecimento de água da região. 


Local onde poço tubular está instalado é impróprio, dizem pesquisadores. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Por meio de nota, a SDR acrescentou que o poço em questão deve ter sido reativado por terceiros. A respeito da cobrança da taxa mínima aos moradores pelo uso da estrutura, o órgão alegou que deve ser uma cobrança vinda dos próprios moradores que podem ter reativado o poço porque não queriam arcar com o pagamento do abastecimento por parte da Agespisa.

O órgão reiterou que não tem nada feito nem administrado pela Prefeitura na região em relação a poços e que enviará uma equipe ao local para apurar a situação e toma as providências cabíveis.

Posto de saúde descarta material hospitalar em poço desativado

Durante a visita ao povoado Alegria, a equipe do Portal O Dia flagrou ainda material hospitalar do posto de saúde local sendo descartado em um poço desativado que fica atrás da unidade médica, a poucos metros do poço tubular. Foram encontrados vários resíduos, inclusive infectantes dentro de sacos identificados com o símbolo do serviço de saúde. 


Material infectante foi encontrado dentro de poço desativado. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

Esta contaminação por material hospitalar, segundo o professor Érico, é seríssima porque, diferente da contaminação por coliformes, tem-se produtos químicos tóxicos de alto poder de contaminação do lençol freático. Para piorar a situação, não se sabe há quanto tempo este material está ali continuamente liberando elementos químicos na água.

“A gente não sabe a dispersão desses contaminantes, não sabemos o tempo que estão aí, então é algo gravíssimo para toda a comunidade, principalmente para essas casas que usam os poços cacimbões. Ou seja, não basta a contaminação por fossas, ainda constatamos contaminação por resíduos do posto de saúde em um poço aberto, abandonado, sem depósito adequado de produtos tóxicos”, afirma o professor.

Atrás do posto de saúde da comunidade também foi constatado o descarte irregular de lixo hospitalar e residencial. O local fica entre os poços cacimbões e tubular. O Portal O Dia procurou a FMS para comentar a respeito do descarte de resíduos do posto de saúde no local. Por meio de nota, a Fundação disse que o local já foi devidamente limpo e que acionou a Vigilância Sanitária para averiguar o trabalho realizado e orientar quanto à disposição dos resíduos.


Lixo encontrado atrás do posto de saúde da comunidade. (Foto: Jailson Soares/O Dia)

A FMS comunicou ainda que irá investigar o caso, informando de antemão que a UBS possui plano de gerenciamento de resíduos sólidos e segue rigorosamente o descarte de seu lixo. “Os servidores, rotineiramente, fazem a segregação e acondicionamento dos lixos da maneira adequada e, posteriormente, o lixo identificado como comum é recolhido pelo caminhão de coleta e o lixo identificado como infectante é recolhido por empresa terceirizada, contratada pela FMS””, diz a nota.

Por: Nathalia Amaral e Maria Clara Estrêla
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