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Discurso de posse de Bolsonaro foi pura ideologia, dizem intelectuais

Nos dois momentos, subentende-se que Bolsonaro associa ideologia ao pensamento de esquerda, ao qual se apresenta como feroz opositor. "O significado dado por ele é exatamente o de alguém que tem ideologia".

04/01/2019 10:37

Ao tomar posse como presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL) prometeu combater "ideologias nefastas" que corroem valores e tradições do país. Fez isso, entretanto, por meio de dois discursos que eram pura retórica ideológica, afirmam intelectuais ouvidos pela reportagem.

No primeiro pronunciamento, no Congresso, defendeu a necessidade de livrar o país de "amarras ideológicas".

No segundo, após receber a faixa presidencial, afirmou que não se pode deixar que "ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros". "Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade", completou.

Na praça dos Três Poderes também disse que aquele era o dia em que o povo começaria a se "libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto".

O presidente Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

Nos dois momentos, subentende-se que Bolsonaro associa ideologia ao pensamento de esquerda, ao qual se apresenta como feroz opositor.

"O significado dado por ele é exatamente o de alguém que tem ideologia. Ele exprimiu uma posição ideológica de extrema direita que é contra os princípios básicos da democracia", diz Roberto Romano, professor aposentado de ética e filosofia da Unicamp.

"Foi um discurso de ruptura, algo bastante diverso do pensamento conservador clássico. Não tocou em medidas concretas para modificar procedimentos do Estado e da sociedade. Falou apenas de coisas abstratas, que chamam atenção pelo aspecto emocional. Ele só foi ideológico, mas se escusa disso dizendo que os outros é que são ideológicos, mas ele não."

Romano explica que o conceito de ideologia surgiu no início do século 19, criado pelo francês Destutt de Tracy, para descrever a formação das ideias, das crenças que fornecem os pressupostos para a interpretação dos fatos. Nesse sentido, é um termo neutro, não restrito a um único campo do espectro político.

A carga semântica negativa teve uma de suas origens nos textos de Karl Marx, para quem a ideologia é um mascaramento da realidade, uma falsa consciência que operara para preservar os interesses das classes dominantes.

Quem estivesse sob o domínio dessa visão distorcida precisaria ser libertado -e nesse ponto, curiosamente, Bolsonaro parece estar alinhado ao teórico do comunismo.

"É engraçado, né? Marx, o grande alvo das críticas de Bolsonaro, foi um dos primeiros a criticar a ideia de ideologia. Isso mostra que o redator do discurso é um ignorante em história da cultura ocidental moderna", diz Romano.

Mais ligado ao campo conservador, Francisco Razzo, mestre em filosofia pela PUC, vê em parcela da direita brasileira um discurso combativo e pouco sutil, em que o adversário é demonizado, o que provoca um achatamento do discurso público e político.

"Bolsonaro fala em combater a ideologia como se ele não tivesse uma também, como se ele visse as coisas tais como elas são, e seus adversários estivessem mais próximos da fantasia."

Autor dos livros "A Imaginação Totalitária" e "Contra o Aborto", ambos da editora Record, Razzo tem especial apreço pela concepção de ideologia dada por Hannah Arendt. A pensadora alemã, conta ele, entendia o termo como uma visão tão coerente de mundo, tão fechada a argumentos alheios, que chega a anteceder os fatos. Todo ideólogo, assim, tenta conformar a realidade a suas crenças.

"Esse é o risco do poder, de todo poder. O político quer olhar o mundo a partir de sua ideia de mundo e usar a força coercitiva do Estado para enquadrar a sociedade", diz. "Bolsonaro, no meu entender, peca nisso. Ele não percebe que, no fundo, é só mais um ideólogo no poder. A diferença é que ontem era um de esquerda; hoje, um de direita."

Historiador dedicado ao estudo da esquerda no Brasil, Daniel Aarão Reis afirma que Bolsonaro levou aos discursos de posse o hábito populista de inventar fantasmas a serem combatidos. Entende que a estratégia soa convincente porque o presidente parece de fato acreditar neles.

Na visão de Reis, por exemplo, é um equívoco completo de análise dizer que há uma ameaça socialista no Brasil.

O historiador argumenta que os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff foram herdeiros da política de conciliação de Getúlio Vargas, algo bem diverso do socialismo.

"Houve até uma ilusão de que o PT traria uma ideia nova, mas apenas retornou ao varguismo. O nacional estatismo petista buscou unificar o país com reformas moderadas que integrassem as camadas mais pobres, mas sem pôr em risco o capitalismo."

Embora o artigo primeiro do estatuto do PT diga que o partido tem o objetivo de construir "o socialismo democrático", Reis considera essa referência bastante vaga. "Isso nunca foi tema de uma reflexão aprofundada."

De toda forma, diz, a ideia de "ameaça socialista" foi incorporada por parte do eleitorado, tanto pela relação de conciliação do PT com o socialismo autoritário (Cuba, Venezuela) quanto "pelos erros colossais que os petistas cometeram e se recusam a assumir".

Fonte: Folhapress
Por: Marco Rodrigo Almeida
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