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"œDemocracia é você eleger um representante e fiscalizá-lo"

Em entrevista, o ex-presidente nacional da OAB, Cezar Britto, analisa o cenário político e debate riscos para a credibilidade do Judiciário.

26/08/2019 06:41

O DIA conversou com o advogado Cezar Britto, que presidiu a nacionalmente a OAB entre os anos de 2007 a 2010. No Piauí para participar de um evento da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, ele conversou em entrevista exclusiva ao jornal O DIA. Na ocasião, ele analisou o cenário político atual e debateu riscos que podem atingir a credibilidade do Judiciário. Ele criticou o excesso de holofotes no cotidiano do Judiciário e o que chamou de “politização da Justiça e judicialização da política”. O advogado defendeu a lei contra o Abuso de Autoridade e defendeu uma maior atenção ao devido processo legal de casos de grande repercussão. Uma boa leitura!

Como o senhor tem acompanhado esse impasse envolvendo o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz? Inclusive analisando o relacionamento institucional que a Presidência da República e a OAB representam para o país?

Muito se fala que o Brasil passa por um dos seus piores períodos, um período de muito ódio, muita mentira transformada em verdade. Isso é muito estimulado pelo presidente da República, que parece que não desceu do palanque, ou, compreende ele, que por ser assim, não deveria mudar o seu estilo. Ao não mudar o seu estilo e continuar um ‘presidente candidato’, reproduzindo o seu discurso de campanha, com muita raiva e muito ódio, ele separa as pessoas, separa as instituições, separa as regiões, causando um mal muito grande ao Brasil. As pessoas andam tristes, um  tanto deprimidas; famílias andam brigando, irmãos se odiando; o  trabalho passa a ser um local não receptivo, por conta desse discurso permanente de ódio. Esse discurso refletiu na OAB e tem refletido, porque o papel da Ordem é defender o Estado Democrático de Direito e defender a pessoa humana. Quando a pessoa humana é agredida ela entra em confronto com quem a agride. É difícil ter um presidente da ordem, na historia da instituição, que não tenha tido esse tipo de confronto com o presidente de plantão, pouco importa o partido que era, a coloração, é da própria natureza de quem é encarregado de defender as instituições democráticas o confronto com as autoridades. No que se refere à Bolsonaro e a OAB, ganhou uma conotação nova. Como o presidente é defensor assumido da ditadura militar, como o presidente é defensor assumido da tortura, ele escolheu o presidente Felipe Santa Cruz como adversário, porque ele é filho de um desaparecido político, filho de um torturado. Então, o presidente da OAB, além de representar a Ordem, ele representa uma situação oposta ao que ele [Bolsonaro] pensa, que é a lembrança que a ditadura torturou, matou, e promoveu o desparecimento forçado, que são crimes contra a humanidade. Daí esse confronto entre a presidência da República e a presidência da Ordem.


Foto: Divulgação

Há inclusive uma proposta do Governo que acaba com a obrigatoriedade da filiação em conselhos de classe para o exercício de algumas profissões. O projeto atinge em cheio órgãos de fiscalização profissional. Como o senhor avalia esta medida não apenas em relação a advocacia, mas a toda as profissões?

Quem tem raciocínio autoritário, não gosta de contestação. Quem tem raciocínio autoritário, não aprende com a opinião do outro. Uma das características do atual governo é evitar o ponto de vista divergente. Se procurou acabar com os sindicatos, asfixiando sua fonte de subsistência, para que não tenha contestação, os conselhos de fiscalização e a ordem, para que não se fiscalize. Todos os institutos de fiscalização entraram na rota de colisão com aquele que acha que não deve ser fiscalizado. Todo mundo que discordou dele, inclusive membros da Polícia Federal, foram afastados. Então o choque institucional com os conselhos de fiscalização não é pelo o que os conselhos fazem, mas sim porque o presidente quer reinar absoluto. Ele resume isso numa frase: ‘Eu fui eleito, me aguentem assim”. Democracia não é isso. Democracia é você eleger um representante e fiscalizar o representante. Ele quer eliminar todas as instituições democráticas, o que é muito perigoso. Felizmente, a reação tem sido muito forte e ele não tem conseguido esse intento, mas pela vontade presidencial, que graças a Deus não é vontade ditatorial, o Brasil tem resistido à essas investidas.

Qual sua posição em relação a Lei do Abuso de Autoridade. O texto já foi aprovado pelo Congresso Nacional e que aguarda apenas a sanção presidencial para ter validade? O senhor acredita que ele precisa ser vetado?

Pessoas confundem autoridade com autoritarismo. Quem confunde autoridade com autoritarismo, evidentemente, é contra qualquer lei que possa coibir o autoritarismo. Eu tenho dito que quem tem a função de zelar pela lei deve dar o primeiro exemplo, não abusando. Mas se aquele que abusa é o que tem a função de controlar e evitar os abusos, temos que ter uma lei de controle. O projeto que foi aprovado pelo Congresso não é uma lei de vingança, não é uma lei que diz que as autoridades públicas, do Judiciário, do Ministério Público e da polícia estão com suas atividades proibidas. Ela não diz isso. Quem tem a palavra final é o próprio magistrado. Quem poderá definir o que é o abuso não é a lei, mas o julgador no caso  concreto. Se nós acharmos que esse magistrado que vai julgar ao final ele vai abusar, mais um motivo para nós defendermos a lei de abuso. Eu acho muito contraditório um magistrado ou membro do Ministério Público ser contra a lei de abuso, quando eles darão a palavra final. A investigação continuará sendo do delegado, a denúncia do Ministério Público e  o julgamento continua sendo da magistratura. A lei é uma das coisas mais positivas para a democracia nos últimos tempos, até porque, dados revelados pelo The Intercept, demonstram que abusos são cometidos na clandestinidade dos processos.


Foto: Agência Brasil

Recentemente, o STF decidiu suspender o andamento de todos os processos que tinham como base dados administrativos do Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o que para muitos, é um retrocesso, já que interfere diretamente em várias investigações. Qual sua opinião sobre essa decisão do ministro Dias Toffoli?

O sigilo das contas, o sigilo bancário, o sigilo telefônico, o sigilo da confissão das igrejas são bens e garantias da Constituição Brasileira. Você não pode quebrar sigilos, achar que qualquer pessoa pode utilizar de sua autoridade para quebrar esses sigilos que são consagrados na humanidade como fundamentais à pessoa humana. Demonstrou-se que o Coaf, ao quebrar facilmente o sigilo bancário estava facilitando as perseguições políticas, estava permitindo que as pessoas tivessem acesso a dados que poderiam ser objetos de chantagem. Acho que o ‘freio de arrumação’ dado pelo Supremo Tribunal Federal foi correto, ao dizer que é possível sim quebrar o sigilo bancário, desde que por Ordem Judicial. O Supremo não disse que o sigilo bancário é absoluto. O sigilo que deve ser absoluto é o sigilo sobre o ‘ser’, e não o sobre o ‘ter. Sobre o ‘ter’, precisa ter o controle do Poder Judiciário. O Brasil tem que parar de julgar conforme o lado. O fato de ter sido o Flávio Bolsonaro, que pregava que o Supremo é um privilégio, não impede minha avaliação que é um ‘freio de arrumação’ para evitar o uso político dos dados bancários das pessoas.

O senhor acredita que o STF tenha algum papel na chamada “crise do Judiciário brasileiro”? O constante envolvimento deste poder com agentes políticos, mesmo que dentro de uma lógica legal, coloca em descrédito o Judiciário na sociedade? Relações próximas entre este poder e ou seus membros com políticos ou até mesmo outros membros de outro poderes prejudica a imagem do Judiciário? 

O Poder Judiciário é um poder, como o próprio nome diz. E um poder tem que se relacionar com os outros, a própria Constituição nos mostra que eles são harmônicos e interdependentes, e harmonia significa que precisam constantemente estar conversando. Não há anomalia democrática quando os poderes conversam. As criticas que eu faço ao Judiciário e eu tenho feito reiteradamente, antes mesmo que se falar em Lava Jato, é que os holofotes estão começando a atrapalhar o Supremo. Eu tenho falado que quando o holofote é elevado a fonte de direito, não percebe o magistrado que traz escuridão ao processo. E quando se confunde acórdão com autógrafo perde-se um magistrado, embora se ganhe um artista. Essa é a crítica que tem que ser feita ao Judiciário, não só ao Supremo. A parte de publicização das decisões que também é importante para a democracia não pode ser confundida com o espetáculo do Poder Judiciário. Transmissão ao vivo e tudo mais. O Tribunal midiático ele condena a honra das pessoas e quando alguém tem a honra maculada, não tem jeito de tirar. Não tem ação rescisória, ação revisional que tire. Então tem que ter muito cuidado com a mídia, quando as condenações são destituídas do devido processo legal. E o Judiciário na minha avaliação entrou nessa de buscar a opinião pública como respaldo das suas decisões. Agradar a opinião publicada. Isso influencia julgamento. Eu tinha feito algumas interrogações um tempo atrás dizendo assim: quando o acusador e o julgador ganham dinheiro em palestras sobre os casos que estão julgando, quando eles tem livros publicados como biografias por causa dos processos em que estão atuando, quando tem filmes sobre eles e eles choram emocionado sobre os filmes de processos que estão julgando...qual a chance do réu ser absolvido? Os autógrafos serão rasgados, os livros serão jogados no lixo? Não. É preciso ter muito cuidado com os holofotes como fonte processual. Sempre deixando claro que qualquer que seja o cidadão. O cidadão vítima de um julgamento que estiver sob holofote, a perspectiva de aplicação de Justiça é muito pequena. Salva-se se essa também for a opinião publica ou publicada. A função contra majoritária do Poder Judiciário dificilmente será exercida. 


"Quem confunde autoridade com autoritarismo, é contra qualquer lei que possa coibir o autoritarismo"


Tivemos recentemente e ainda passamos por um momento de divulgação de conversas entre o então juiz Sérgio Moro e integrantes do MPF da força-tarefa da Lava Jato. Elas tem uma repercussão política bem grave. Sem entrar na questão da prova ílicita, e muito além desse caso específico, como o senhor avalia essas relações íntimas entre julgadores e partes? Qual o risco que isso pode trazer a credibilidade do Judiciário do país?

O devido processo legal é uma conquista secular da humanidade. A garantia da defesa a um tratamento imparcial, o contraditório, isso que nós chamamos de processo é uma garantia de que o cidadão não poderá ser vitima do abuso estatal ou da vontade de alguém de plantão. Isso exige regras como uma equidistância do julgador em relação às partes. O julgador, que é o Estado, não pode se envolver nem com a acusação, nem a defesa. Se quebrar essa regra da paridade de armas, o processo tem que ser nulo. No caso concreto do Juiz Sérgio Moro com o Deltan, é preciso separar o que é revelado da Lava Jato do caso da Lava Jato como um todo. Por enquanto, pelo menos o que é revelado, não se mostra nulidade de todos os processos da Lava Jato. Mas os processos em que conseguirem comprovar que houve conluio entre julgador e acusador, isso pra mim são nulos de pleno direito. Até agora o que se revela, é mais ligado do presidente Lula, ali parece claro que havia um conluio ideológico e uma vontade pessoal de condenação, desde forçar a competência originária da 13ª Vara, com o famoso power point em que se revela que nem o acusador e nem o julgador tinham certeza da competência, porque precisava tá vinculado a Petrobras e eles forçaram essa ligação. Até os demais atos revelados como troca de informações, fornecimento de testemunha, até pedir que uma procuradora seja substituída porque não é tão competente nas perguntas. O vazamento seletivo para que a opinião pública influencia no julgamento. O cobrar do julgador diligencia que ele menos vai julgar. O forçar delação premiada contra decisão do próprio Supremo que libertara. Do que revelaram, parece muito claro que havia um interesse pessoal, ideológico do julgador e do acusador na condenação. Que coincidentemente ou não, resultou com a assunção do julgador ao cargo de ministro da Justiça, do candidato que se beneficiou com o afastamento do Lula. Num país sério, democrático, esse processo já teria sido nulo desde o início. E como diz a OAB, já teria o ministro sido afastado, até porque demonstrou a não isenção na própria apuração do processo. No caso do processo para verificar se há ou não veracidade nas informações, e ele era parte interessada, ele conduziu ilicitamente, porque o ministro não pode interferir nos trabalhos da Polícia Federal, e ele não só interferiu, conheceu, como avisou autoridades da República o que tinha acontecido e ameaçou destruir as provas. Isso demonstra claramente que havia isenção. 


"O Brasil tem que parar de julgar as questões e ter um posicionamento conforme o lado"


Um termo que tem ganhado muito espaço nos últimos tempos é o ativismo judicial. Como o senhor entende esse processo de ativismo? Ele traz riscos ao direito?

Eu tenho um artigo publicado, há mais de 10 anos, a politização do Judiciário e a judicialização da política. Eu acho que nós, desiludidos com o executivo e o legislativo, começamos a transformar e dirigir ao Judiciário todas as nossas súplicas, reivindicações, ao ponto de que tudo só ia valer se o Judiciário dissesse que valia, ainda que não houvesse vazio decisório. Por exemplo: na política de cota, havia vontade do governo federal e havia lei federal estabelecendo as cotas raciais, mas só valeu quando o Judiciário disse que valia. O financiamento de campanha, a ficha limpa, que a população se mobilizou, houve uma emenda constitucional, mas só passou a valer quando o Judiciário disse que estava valendo. Nós começamos a transferir a ultima palavra sobre a vida do país cada vez mais em decisão de política, para o Judiciário. A consequência foi à politização do Judiciário, o ativismo público do Judiciário. A princípio pareceu ser bom, porque estava respondendo demandas populares, mas logo ultrapassou e passou a anular a política. A achar que a política é coisa ruim, que era sinônimo de politicagem. E você não pode anular a politica porque ela é a forma como o cidadão se expressa, o contrário da política é o autoritarismo, você se expressa através da política. O regime de bens, o casamento, a educação, a saúde, enfim, todas as questões são resolvidas no campo político, você não pode transferir para o Judiciário a decisão final. Se você olhar que o Judiciário não é eleito e fica equidistante dos fatos, é na política que você pode refletir, e a sociedade é quem elege quem vai fazer a política e mais: periodicamente. A política é que deveria está resolvendo tudo e não o Judiciário. 

Por: Natanael Souza - Jornal O Dia
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